terça-feira, 28 de janeiro de 2014

O desastre do Castelo de Monte Rei.




Por Eduardo Castro

Por onde começar quando de desfeitas patrimoniais se tenta falar? A comarca de Verim não é uma excepção. Desde os corta-fogos ou aceiros que destroem castros, mamoas e petróglifos, à autoestrada que arrasou um jazigo possivelmente único em Galiza e os incontáveis estragos da obra do AVE.
Todo isto, unido ao desleixo das administrações locais, provinciais, autonómicas e estatais, mais preocupadas por ganhar eleições e manterem-se nos postos de poder, do que de se preocuparem do bem-estar dos seus governados, e muito menos no seu património. Não posso deixar de fazer certa reflexão ou analogia entre um assunto e o outro. Por exemplo, lembrando o acondicionamento da estrada de Verim para Vilar de Bárrio há uns anos, justo antes das eleições... O mesmo quando falamos da estrada Verim – Campo Bezerros, que se fez a consciência, ficando claro o porquê, pois já se sabia que ia ser necessária para o trânsito de camiões e maquinaria pesada. Se nos pomos a falar do Castelo, pensemos que quando se arranjou o acesso e se destrói a calçada é já com a intencionalidade de utilizá-la para transportar o material da obra que hoje se está a levar a cabo.



Quero dizer com isto que o Património, tanto cultural como histórico ou natural, não lhes interessa às administrações, excepto como fonte de ingressos privados, camuflando centos e milhares de milhões de euros no processo. Monte Rei é um castelo muito visitado todo o ano. Gosta. Gentes de muitos lugares vêm vê-lo e escutamos os comentários que fazem os visitantes sobre o deplorável estado da Fortaleza, do seu contorno, do abandono e da falta de uma adequada conservação. O vandalismo e as inclemências do tempo, chuvas e vento, afetam também gravemente às muralhas e os edifícios. Quando se decide, por parte da administração qualquer projeto de restauro ou de conservação fez-se sempre pouco e nem sempre bem. Lembramos um muro de tijolo que se fez naquele primeiro restauro, que felizmente se chegou a tempo de retificar para fazê-lo em pedra. Aquelas máquinas desfizeram a calçada, ao Sul, na Porta do Sol, quando puseram o sistema de esgotos. As obras desfizeram o empedrado que ficou de cimento armado ou terra com uma moreia de tampas de esgoto de fundições, redondas (quarenta em menos de 300 metros), e muitos sumidoiros, pelo menos uns quinze.

O caminho real também sofreu um restauro, para mim pouco afortunado. No interior do Palácio dos Condes eliminaram-se o lagar e a adega do Castelo. Quando eu era rapaz levaram treze canhões para a Crunha ainda que posteriormente devolveram quatro. Ali, no passeio marítimo hai canhões de Monte Rei sem qualquer referência de que são regiomontanos; e no Castelo de Santo Antão, está, ou deveria estar ainda o canhão chamado de “Golondrina”, que levaram para lá a finais do século XIX com o fim de avisar com um canhonaço a chegada do correio de Cuba. 
Dizia o Professor Xesus Taboada Chivite que pelos anos 30, havia em Monte Rei mais de trinta c canhões. Hoje só ficam quatro e meio...

No acesso norte, pela porta de São Francisco, uma calçada -calculamos que pelo menos é de época medieval- foi tapada há pouco tempo, em boa parte do seu percurso com “adoquins” (paralelepípedos de pedra). Debaixo está a calçada coberta com cimento armado, com vareado de ferro, terra e “adoquins”. Subiu o caminho pelo menos uns 40 cm, que para além de tapar o empedrado antigo tira-lhe estética a portas e muros. No interior da “garita” que está para levar controlo da porta ao lado do Cárcere, só poderia estar um soldado anão, muito pequeno. A obra não foi terminada, pois deveu de dar-lhes vergonha. Disseram que se tinha feito com conhecimento e a autorização de Património. Se isto se fez sem autorização, está mal, mas se se fez com autorização, está pior.

Hoje, não se pode visitar boa parte do Castelo porque está cheio de andaimes e de valados que proíbem a passagem.

Brigadas de operários estão desfazendo por dentro do Palácio dos Condes, “tabiques”, escadas.... Deixam só as paredes mestras. Não sei se eles sabem bem o que vão fazer.... Dizem-me que um negócio hoteleiro. Quartos, cozinhas, taberna, restaurante e lojas parece que também lhe porão um elevador.
 

A ideia é genial pois ao pé do Castelo onde noutro tempo houve uma escola de Jesuítas, a primeira em Galiza, está o Parador de Turismo a menos de 500 metros. Este fecha quatro meses no ano e esteve quase por desaparecer por falta de clientes e por má gestão. Monte Rei é referente histórico, cultural e turístico da bisbarra mas lamentamos a má vida lhe dão aos que deveriam cuidá-lo, conservá-lo, restaurá-lo e difundir a sua imagem como reclamo turístico-cultural.

Muitos aldrajes se levam fazendo neste monumento no transcurso do tempo. Uma mágoa.


quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Ferreiro e Pimentel na denúncia do sadismo falangista




Por Fátima Figueiredo

Em termos de crise política, social e económica, é vulgar ouvir cidadãos que, com a memória curta ou/ e parcial e com muita falta de informação, se relembram do passado com nostalgia, como uma época em que se era pobre, andava descalço, não se tinha acesso à educação, se passava fome, se sofria torturas ou se era morto por ser contra o regime ditatorial, mas em que tudo, mesmo assim, parecia estar no seu lugar. Tal facto é absolutamente abominável em países que sofreram ditaduras e mais ainda de longa duração, tenham sido elas de direita ou de esquerda.
O esquecimento das atrocidades e crimes cometidos comprova-se então com a publicação de muitas obras sobre os ditadores e na atitude de fanáticos que surgem devido à frustração doentia por saberem inconscientemente que são criaturas que só através do Mal poderão obter alguma relevância. Em Portugal, têm surgido inúmeros livros sobre Salazar e grupos neofascistas no Facebook; em relação a Espanha, existem ainda fascistas que usam t--shirts e pulseiras com as cores do fascismo franquista, como constatámos numa praça em Oviedo.
Neste contexto e porque há que acordar e avivar a memória de muitos, importa-nos aqui apresentar alguns autores galegos e uma obra de cada um em que se denuncia o horror da ditadura de Franco. Esperamos assim contribuir para que nomes menos conhecidos e menos salientados do que Rosalía e Castelao sejam relembrados, pois a literatura tem a obrigação de revelar a verdade e é isso que acontece nas obras dos escritores a seguir apresentados.
Começamos por Xosé Fernández Ferreiro (n.1931), membro do grupo literário nacionalista Brais Pinto1, que apresentou e denunciou o início do mundo repressivo da ditadura fascista. Começando por publicar poemas, na década de 1950, dedicou-se depois à narrativa, a par da sua atividade jornalística nos jornais Faro de Vigo, La Noche, El Correo Gallego e La Voz de Galicia.
Da sua obra narrativa, destacamos Agosto do 36 (publicado em 1991 e que mereceu o Prémio Xerais) pelo quadro de horror que apresenta da realidade que se viveu durante os terríveis anos da Guerra Civil Espanhola, de que são exemplo o martírio e fuzilamento das personagens Sara e Gregorio, na Touça, símbolo espacial e microcosmos do terror vivido em todas as nações que integram a atual Espanha.
Refere o narrador que tudo começou quando Gregorio, republicano, soube que os falanxistas o tiñan na lista para “darlle o paseo” (Ferreiro: 1991, 15), agravado pelo facto de Sara o ter preferido a Manuel, que aderira às tropas nacionalistas. Tudo isto obrigou-o a ter de fugir para escapar à morte, uma vez que aquelas, procurando descobri-lo, montaram sistematicamente guarda à sua casa: empezaron a presentarse de improviso na aldea polas noites, ás altas horas, e rexistraban non só o seu fogar senón outros onde supuñan ou sospeitaban que podía estar escondido (Ferreiro: 1991, 17). Os que engrossavam estas tropas eram naturalmente homens sem valores e com uma desmedida ânsia e desejo de poder, ambicionando um cargo que os fizesse ultrapassar obstáculos sociais e o sentimento de inferioridade que sentiam, na aldeia em que viviam, símbolo de pobreza material e de falta de importância e ascensão social, e colmatar igualmente frustrações pessoais persistentes. Perseguindo, controlando, matando, vían naquilo unha oportunidade para deixa-lo traballo da aldea e ser alguén. Desertores do arado. Homes que non lle tiñan apego á terra. Soamente tiñan odio (...) a forza das armas, e aqueles uniformes que os convertían en seres poderosos contra os que nada se podía (Ferreiro: 1991, 18).
Do ponto de vista material, eles conseguiam enriquecer, apoiados por um regime ditatorial que recompensava largamente os que o ajudavam a espalhar o terror e os informasse de forma conveniente acerca dos seus inimigos. Foi o que aconteceu com a personagem Manuel, quen despois dunha prolongada ausencia, cando volveu, construíu unha casa (Ferreiro: 1991, 18), o que auxiliou a população a ter a certeza da sua adesão à fação falangista.
Gregorio, pelo contrário, simboliza a resistência republicana, defensora dos direitos do povo, controlado não só pelos militares como também pelos seus aliados representantes da Igreja Católica. Por isso, aquela personagem critica o clérigo Xenaro, representante da aliança daquela com os falangistas, supostos defensores da moral e da nação contra a ameaça comunista: vostedes os cregos (...) non fan máis ca enganar á xente contándolle mentiras desde os altares e púlpitos, en lugar de lle dici-las verdades e abrirlle os ollos (...) interésalles máis que o pobo siga cego e analfabeto,pois así, coma os bois capados, é máis manexable (Ferreiro: 1991, 31).
As tensões acumuladas e as discórdias políticas culminaram com o rebentar da guerra e com o horror dos fuzilamentos, os paseos e encarceramentos, arrancando a vida aos que se opunham ao regime que se revelava monstruoso. Os falangistas chegavam a revelar o seu orgulho pela crueldade que cometiam e disto também o narrador nos dá conta, nesta obra, quando refere a atitude de Manuel, numa das vezes em que regressa pomposamente a Abades e expressa bem a ideologia já fermentada pelo falangismo, mostrando-se máis empoleirado ca nunca, coa súa pistola ó cinto e o fusil ó ombro. Logo, ó marcharen, soltou (...):
-Imos limpar España de herexes e comunistas (Ferreiro: 1991, 34).
Do lado oposto, deparamo-nos não só com Gregorio como também com Sara, a trágica heroína representante das mulheres do povo que tudo faziam para defender o seu homem da perseguição, símbolo da poderosa proteção feminina que, determinada, não se importa de dar a própria vida por Amor. Ela aqui simboliza igualmente a Justiça, não apenas política como também a moral e ética, contra a falta de valores e de preservação da vida humana: ben sabía que de caer nas súas mans mataríano sen piedade (...) estaba disposta a atura-lo que fose. A facer todo o que tivese que facer, con tal de que a Gregorio non lle pasase nada malo. Sobre todo que non o maten (Ferreiro: 1991, 37).
Para se esconder e sobreviver, Gregorio refugia-se na serra, limitado nos seus movimentos e condições de sobrevivência e ajudado por Sara, que lhe prestava um apoio incondicional, levando-lhe o que precisava e informando-o acerca do que se passava na aldeia, à semelhança de muitas outras mulheres que eram o elo de ligação entre os homens que encontravam refúgio no monte e o contacto com a realidade, mantendo-os ao corrente do que acontecia e levando-lhes mantimentos.
Devido ao perigo que tais incursões na serra acarretavam, o pai de Sara, na povoação, trancava bem a casa com medo dos falangistas. Sabía que andaban agachados polos camiños, as hortas e as eiras, para coller ó mestre se baixaba dos seus tobos da serra para verse con Sara (Ferreiro: 1991, 40), havendo o perigo acrescido dos outros habitantes serem falangistas ou seus informadores, sendo uns conhecidos e outros suspeitos, o que criava um ambiente de tensão e desconfiança que prejudicava e alterava a vida diária e o relacionamento entre os aldeãos.
Tal situação evoluiu de tal modo negativamente que se pressentia um acontecimento nefasto, trágico, no zunir do vento contra as follas do millo (...) ou no cheiro a rastrollo que viña das leiras recén segadas. De noite os cans semellaban nerviosos, e ladraban dun xeiro desacostumado. (...) Unha madrugada, o branco luar que prateaba as chairas do val de Abades e Santos e mailos cumes da serra, escureceu por uns minutos. “Foi entón cando vímo-la cara da lúa tinxida de sangue. (...) Non só era a lúa: o ceo todo aparecía vermelho, coma se fose de lume” (Ferreiro: 1991, 42).
Os falangistas Manuel, Luís, Leonardo e Xan levaram Sara para a Touça, no dia 13 de agosto, dizendo aos habitantes da aldeia que avisassem Gregorio: a tragédia evolui a passos largos. Procurando ajudar Sara, aqueles recorreram ao padre Xenaro, que, assumindo a posição da Igreja, defendeu que os falanxistas queren limpar España de herexes e de comunistas (Ferreiro: 1991, 44) e que deveriam avisá-los da localização do noivo de Sara, escondido na serra.
Na diversidade humana apresentada e respetiva motivação para aderir ao Falangismo, encontramos Lázaro, taberneiro de Abades, que abastece os carcereiros de Sara de provisões e os informa do que se passa na aldeia, ajudando-os assim a delinearem estratégias para atraírem Gregorio à Touza, com Sara como chamariz: no forno da Piedade parece que onte algunhas mulleres murmuraron de ti (Ferreiro: 1991, 118) e dixo com mellor ânimo:
-Hoxe tráiovos un bo xantar (Ferreiro: 1991, 118).
Uma forma que os falangistas encontraram de tentar acabar com essa articulação foi a intimidação incutida com os disparos noturnos: de cando en vez oíanse disparos, de noite e de día, nos camiños próximos a Abades, Santos, Xestosa e Fondodevila. (...) Os falanxistas facían prácticas de tiro contra as árbores e contra os outeiros para amedoñar á xente mediante o terror que isso orixinaba (Ferreiro: 1991, 37). Tal como aos restantes habitantes de locais em que se ouviam tais disparos, a Sara batíalle com forza o corazón no peito cando chegaban ata ela aquelas detonacións. Sempre lle parecía que disparaban contra Gregorio (Ferreiro: 1991, 37), pois os disparos desde logo que tiñan o seu efecto sicolóxico, pois que enchían os camiños, as aldeas e mailas mentes de impotencia. Era coma se a guerra se fose achegando a nós pouco a pouco, inevitavelmente (Ferreiro: 1991, 37), guerra na qual o povo, impotente, era um inimigo fácil de dominar, preso pelo medo às suas casas: moito medo había, e moita confusión, entre as xentes de Abades. Cerrada a noite metíanse nas súas casas e asexaban polas fiestras de cara á serra (Ferreiro: 1991, 89).
E o povo tinha muitas razões para sentir medo. Além dos fuzilamentos, pressões e prisões, outra situação está retratada nesta obra de Xosé Fernández Ferreiro: a violação de mulheres companheiras de homens foragidos, o que quase acontece com a protagonista, isco usado para atrair Gregorio: achegou-se á prisioneira e mirouna un momento. De repente, sen máis, desabotooulle o vestido á altura do peito, e arrincoulle o xustillo cun forte tirón de man (Ferreiro: 1991, 93). A ação triplica em horror e violência psicológica e física quando, incapaz de atrair Gregorio para o fuzilar, o ódio de Manuel o leva a praticar tiro em Sara, que se cobre gradualmente de sangue: deulle nun brazo. Volveu logo, e foille dar nunha coxa. O corpo da mestra, enteiramente espido, comenzou a cubrirse de sangue (Ferreiro: 1991, 152), até que finalmente clama desesperadamente pelo socorro do noivo, que não aparece, uma vez que fora já atingido pelos falangistas, que ainda não sabiam que o tinham atingido: de súpeto a mestra comenzou a berrar, coma se tolease de repente. Daba gritos horribles, como adoecida de dor. Chamaba por Gregorio, clamando pola súa axuda para que a sacase daquel inferno. Pedíalle que a matase cun dos seus certeiros disparos (Ferreiro: 1991, 152).
Este quadro de horror é um fiel exemplo da repressão fascista, sádica e brutal, e esta última passagem da obra relembra-nos os dramáticos depoimentos presentes no documentário Memória recobrada, apresentado por Manuel Rivas. Nele, deparamo-nos com a existência do terrível sadismo falangista e é bem patente a memória ainda viva de quem sofreu a repressão e teve de viver escondido para resistir e salvar a própria vida, relatando-o com uma memória ainda bastante fresca das atrocidades sofridas, assim como também se sente o terror do relato do fuzilamento de galegos, as mortes nas cunetas (valas ou bermas das estradas), sendo depois os corpos atirados aos rios para fazerem tremer de terror e intimidarem as populações que viviam nas suas margens.
As mortes nas cunetas e o horror por elas causado é denunciado no poema com aquele nome (“Cunetas”), de Luis Pimentel (1895-1958), publicado pela primeira vez na obra Galicia hoy, da Editorial Ruedo Ibérico, París-Buenos Aires, em 1966, embora esteja datado de 1937, e do qual aqui transcrevemos alguns dos versos mais significativos: outra vez, outra vez o terror!/ Un día e outro día,/ sen campás, sen protesta./ Galicia ametrallada nas cunetas/ dos seus camiños./ Chéganos outro berro./ Señor, qué fixemos?/ -Non fales en voz alta-,/ Hasta cándo durará iste gran enterro?/ -Non chores que podem escoitarte./ Hoxe non choran máis que os que aman a Galicia-,/ Os milleiros de horas, de séculos,/ que fixeron falla/ para faguer un home!/ Teñen que se encher aínda/ as cunetas/ con sangue de mestres e de obreiros./ Lama, sangue e bágoas nos sulcos/ son semente (Rodríguez Fer: 1989, 277-278).
Como facilmente se verifica, este texto é de extrema importância na denúncia da repressão, no território galego, durante a Guerra Civil Espanhola, do fuzilamento das vítimas à beira dos caminhos, deixando os corpos nas bermas ou valetas, durante os paseos a que nos referimos anteriormente, sabendo as vítimas de antemão qual seria o seu destino. Devido a estes ocorrerem em tão grande número, Pimentel usa a metonímia e também hipérbole Galicia ametrallada nas cunetas, o que causava um gran enterro, pois eram muitos os corpos encontrados de resistentes galegos.
Assim, todos os dias, as populações sentiam o terror, não sabendo quem seria o próximo a ser levado, tendo até de chorar os seus mortos em silêncio, para que ninguém ouvisse o seu choro, uma vez que, entre o povo, havia os que passavam informações aos falangistas, traindo a própria família, amigos e comunidade, em troca de favores ou bens, como já revelámos na breve análise de Agosto do 36.
Os que sofrem em silêncio são os que aman a Galicia e o sangue dos que morrem é essencialmente de mestres e de obreiros, gente simples que luta pela sua terra e pelo direito à Liberdade e que nenhum crime cometeu. Daí a invocação à entidade divina, a quem o sujeito poético lança uma pergunta retórica (Señor, qué fixemos?), tendo o povo de engolir a sua revolta e o seu sofrimento porque a sua voz podia causar ainda mais mortandade e sangue. Assim, tem de viver amordaçado (-Non fales en voz alta-), pois o ser humano ainda não está construído, produzido, acabado. Ainda faltam milleiros de horas, de séculos,/ que fixeron falla/ para faguer un home!, um ser humano com sentido de Justiça, Democracia, Liberdade e Bem, sem a sede de sangue que fazia correr os algozes falangistas, causando um enterro gigantesco que demorava a acabar (Hasta cándo durará iste gran enterro?).
O poema passa posteriormente para um sentido mais introspetivo e intimista, a partir daqueles acontecimentos, havendo uma correlação entre o exterior e o interior do sujeito poético: docemente chove./ Enviso, arrodéame unha eterna noite./ Xa non teréi palabras pra os meus versos./ Desvelado, pola mañán cedo/ baixo por un camiño./ Nos pazos onde se trama o crimen/ ondean bandeiras pingando anilina./ Hai un aire de pombas mortas./ Tremo outra vez de medo./ Señor, isto é o home./ Todas as portas están pechadas./ Con ninguén podes trocar teu sorriso./ Nos arrabás,/ bandeiras batidas i esfarrapadas./ Deixa atrás a vila./ Ti sabes que todos os días/hai un home morto na cuneta,/ que ninguén coñece aínda./ Unha muller sobre o cadáver do seu home/ chora./ Chove./ Negra sombra, negra sombra!/ Eu bem sei que hai un misterio na nosa terra, /máis alá da néboa, / máis alá do mar,/ máis alá da chuvia,/ máis alá do bosque (Rodríguez Fer: 1989, 278).
Contrastando com a amarga situação, a chuva cai serena e brandamente, como se não quisesse contribuir para um ambiente ainda mais negro e agressivo, pois a noite já chegou, eterna, como se pretendesse apagar ou tapar os atos violentos cometidos e os corpos que jazem à beira das estradas, mas a anteposição do adjetivo pode também significar que esta noite, este ambiente de terror, demora a acabar, não tem fim, causando cada vez mais vítimas.
Devido ao horror dos acontecimentos que ele próprio presencia, o sujeito lírico não encontrará, depois do que viu, mais vocábulos que expressem a violência e o terror, pois o tempo verbal usado é o futuro, expressando o sucumbir da sua inspiração perante a realidade a que assiste: non teréi palabras pra os meus versos.
Perante o que o rodeia, chega então à conclusão de que isto é o home, apresentando a Deus o resultado da sua criação: um ser que pratica o Mal, que tem prazer em praticá-lo e sente poder ao aterrorizar quem não se pode defender, matando sem qualquer motivo ou sentimento, a não ser ódio. Assim, receando a loucura inimiga insensível a qualquer bom senso ou apelo, todas as pessoas da vila fecham as portas, refugiando-se nas próprias casas, de modo que o sujeito poético, dialogando consigo mesmo, aconselha-se a afastar-se da vila, porque todos os días/ hai un home morto na cuneta,/ que ninguén coñece aínda e o próximo, no dia seguinte, poderá, quem sabe, ser ele próprio. Entretanto, observa ainda uma mulher que chora sobre o corpo do seu home, ao mesmo tempo que a chuva dela se condói e com ela se solidariza.
Profundamente abatido, desolado e carregando consigo as marcas daquilo a que assistiu, o sujeito lírico, sozinho na escuridão, sente a força do mistério sobrenatural do território galego. Por que razão o sente? Talvez porque o ambiente propicia esse sentimento: a noite, a chuva, a névoa, o mar e o bosque são elementos naturais que criam uma auréola de misticismo que contribuem inclusivamente para cristianizar as vítimas dos fuzilamentos. Estes mártires tornam-se também elementos da Natureza, confundindo-se com ela: os seus corpos jazem na terra e talvez as suas almas integrem os bosques envoltos na névoa, dando origem a lendas (não podemos esquecer que a Galiza é um manancial de misticismo, ajudado pelos elementos da natureza que Rosalía de Castro tanto exaltava). No entanto, é referido que esse mistério está além da chuva, da névoa, do mar e do bosque, sendo usada a anáfora para reforçar a ideia de que o mistério está acima de todos estes elementos, portanto, próximo ou ao nível da entidade divina. Esta é a única que poderá saber e entender os acontecimentos trágicos que então ocorriam, interpretação que consideramos pertinente, tendo em conta que, no território galego, os elementos pagão e cristão fundem-se, criando um ambiente de significativa espiritualidade.
O campo semântico predominante relaciona-se com a morte, horror e sofrimento: terror; ametrallada; berro; gran enterro; sangue de mestres e de obreiros; Lama, sangue e bágoas; eterna noite; crimen; esfarrapadas; home morto na cuneta; cadáver; chora; Negra sombra e, de todo o vocabulário usado, poucas são as palavras que têm alguma conotação positiva, como semente, indicadora de que, de tantas mortes e sangue, poderá nascer a revolta e a vitória que acabarão com tanta tragédia. No entanto, até lá, teñen que se encher aínda/ as cunetas/ con sangue de mestres e de obreiros, hipérbole que não estaria muito longe da realidade, na Galiza rural (seus camiños; baixo por un camiño.) ou urbana (Nos arrabás), sendo os assassinatos, fuzilamentos e prisões, pensados e planeados nos pazos onde se trama o crimen. Todas estas ações construíram o quotidiano dos galegos, entre julho de 1936 e março de 1937, sendo assim este poema um resumo esclarecedor da situação vivida nesse espaço de tempo e que perdurou muito além desse ano.
Os galeguistas do interior lutaram, pois, contra situações duríssimas e extremamente adversas, tentando discretamente manter contacto com outros grupos de oposição clandestina não deixando morrer o Galeguismo.

BIBLIOGRAFIA

BACHOUD, André, Franco, Lisboa, Editorial Verbo, 2003

BARREIRO MALLÓN, Baudilio e RECUERO ASTRAY, Manuel, Historia de Galiza, 1ª ed., trad. David Martelo, Lisboa, Edições Sílabo, 2008

BERAMENDI, Justo e NUÑEZ SEIXAS, Xosé Manoel, O Nacionalismo Galego, Historia de Galicia, Vigo, Edicións A Nosa Terra, 1996

FERNÁNDEZ FERREIRO, Xosé, Agosto do 36, 8ª ed., Vigo, Edicións Xerais de Galicia, 1991

PESTON, Paul, A Guerra Civil de Espanha, Col. História Narrativa, Lisboa, Edições 70, 2005

RODRIGUEZ FER, Claudio, Poesía Galega, Vigo, Edicións Xerais de Galicia, 1989.

_______________ A Literatura galega durante a Guerra Civil, Vigo, Edicións Xerais de Galicia, 1994

DVD

La memoria recobrada, RTVE/TVE, Edivisa, dirigida por Alfonso Domingo, 2006

Referências:

1 Constituído em 1958 por um grupo de jovens e estudantes de esquerda, editou uma colecção de poesia,
organizava tertúlias e outras atividade culturais e, a nível teórico, defendeu o Marxismo.
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