domingo, 15 de janeiro de 2012

As confrarias guerreiras galaicas. O transe guerreiro e os deuses obscuros


Por David Outeiro

Continuamos tentando resolver o enigma que vincula a caça selvagem aos ritos de iniciação galaicos e os deuses obscuros. Agora avançamos até a Idade do Ferro, a Kalláikia, posteriormente Gallaecia. Neste período, esta terra conta já com povoados fortificados em todo o seu território. São os castros. Evidencias da belicosidade dum povo composto por múltiplas trebas guerreiras.
Neste caso achamos novos ritos de iniciação associados a fratrias guerreiras. A existência de confrarias guerreiras galaicas é evidente, existindo inclusivamente o epígrafe Lanceroi (Vilar de Perdizes) que faz referência a guerreiros armados com lanças. Diz Estrabo a respeito dos povos que habitavam as ribeiras do Douro que comiam uma vez ao dia, com limpeza e sobriedade se banhavam em agua fria, tomando com frequência banhos de vapor. Também diz que utilizavam pedras candentes ao igual que os espartanos, pondo em relação costumes guerreiros. As saunas galaicas ou Pedras Formosas são a evidência da realização deste tipo de rituais. Estas construções podem ter uma origem muito antiga. Já nas Ilhas Britânicas existiam as burnt mounds, saunas da Idade do Bronze.
Numa citação o Almagro Gorbea diz: "Uma tradição muito antiga, a que caberia supor uma raiz indo-europeia, a julgar pela ideologia que implica, os povos que a praticavam e a sua estreita associação a confrarias de guerreiros"
Estas construções são um bom exemplo dum rito de iniciação apresentando-nos inclusivamente uma simbologia reveladora. Temos de observar neste momento, a sauna de Briteiros e a sua simbologia composta por um trisquel levógiro, um dextrógiro e um "inexistente" que harmoniza a composição.
Citando a José Inácio Regueiro Castro: "As aspas que viram no sentido horário nos trisqueis projetam a energia de cara a nós. Para quem observar, pela contra, se o giro é anti-horário, tiram da energia para o interior da superfície onde estão grafados. É o trisquel, segundo a orientação, gerador ou destrutor ...Além de vermos, na pedra formosa de Briteiros, que se sinala antiteticamente o progresso e o retrocesso, a construção e a destruição, podemos intuir que estamos perante da terceira aspa que não podemos perceber, ou que não temos possibilidade de sentir desde a herança greco-latina imperante."
Esta é para mim uma clara simbologia associada a um rito de iniciação e portanto à morte ritual daquele que aspira a ser um guerreiro integrado na fratria. Quando o aspirante a guerreiro entra na sauna, primeiro entra no vestíbulo, depois se passa a antecâmara...onde se acha frente a "pedra formosa". Neste momento deu dous passos, o terceiro implicará o seu renascimento. Introduzir-se-á pelo oco da pedra formosa e acederá à câmara interior. Chegou o momento do renascimento, mas em que consiste?. O ciclo do guerreiro está vinculado ao trisquel, um ciclo necessário para o seu novo ser A pessoa nasce e cresce e neste período vai formando o seu ego, enchendo a sua mente inconsciente a qual repercutirá na mente consciente. 
Segundo os psicólogos transpessoais e segundo as ensinanças xamãnicas, o rito iniciático ou de passagem é a resolução do conflito duma crise interna. Essa crise interna desestabiliza a harmonia do indivíduo. Passada esta crise, a pessoa adquire a firmeza dum novo sentido. O vida do guerreiro e a sua iniciação encaixa com o trisquel, o levógiro que é construtor...mas esta personalidade deverá mudar. O guerreiro começa a via de passagem, isto implica  a necessidade de rachar com o passado, de superar a crise. É o trisquel dextrógiro e destrutor que atrai a energia. Finalmente o guerreiro passará  a pedra formosa, que é uma "membrana" que o comunicará com outras realidades, com o Além...onde conhecerá esse trisquel que parece oculto. O guerreiro chegará portanto ao conhecimento mediante a indução dum estado alterado de consciência. Temos de ter em conta, que os guerreiros se encomendavam aos deuses da guerra, por isso é porque o transe extático poderá implicar esse vinculo sem retrocesso. 
Lembremos que dum ponto de vista etimológico o enteógeno está composto de “êntheos" (que têm um deus dentro) e “génos” (origem, tempo, nascimento). O enteógeno ou o estado alterado de consciência é aquilo capaz de despertar a consciência de deus no homem...é o acesso ao inconsciente e a confrontação com os medos tão necessária para o renascimento. É provável o uso de enteógenos neste tipo de construções se temos em conta certos elementos paralelos. Heródoto (IV,75, 1-2) testemunha o emprego de canábis pelos escitas em contextos similares. As saunas são, aliás, recintos propícios para acrescentar o efeito dos enteógenos em relação ao transe extático. "Portanto, estas construções oferecem o quadro mais propício para o emprego de alucinógenos como parte integrante de estes rituais de purificação e ritos de passagem que diversos autores vincularam a confrarias de guerreiros" (Almagro Gorbea e Álvarez-Sanchís, 1993; Almagro Gorbea e Moltó, 1992).
Finalmente o guerreiro pôde aceder a essa parte da realidade que está oculta como uma dimensão paralela na que adquire certos conhecimentos e constata com os deuses. Mas também pôde apreender a desencadear um transe de fúria guerreira do que falaremos a continuação. Desta experiência sairá um novo guerreiro, que após abandoar a sauna será incorporado à fratria.
Diz um provérbio Taoísta  que apanhei do Académico da AGLP, Artur Alonso Novelhe “Aquele que conhece aos demais é inteligente, aquele que se conhece a si mesmo se torna iluminando. Aquele que vence aos demais é forte, aquele que se vence a si próprio se torna invencível” e que continua com um comentário "Para vencer-te a ti mesmo, primeiro tens de conhecer-te… para conhecer-te tens que penetrar dentro de ti… e como bem explicam todas as mitologias do mundo, tens que vencer tuas sombras, para renascer na luz… Nesse renascimento voltas-te invencível… Isso dizem, aqueles que fizeram esse tipo de experiência…".
Já temos portanto dous ritos iniciáticos no passado galaico: a caça de animais e a entrada em saunas. Mas uma vez passado o rito iniciático, temos de fazer uma reflexão sobre os deuses dos guerreiros e sobre as suas novas capacidades. Comecemos por fazer uma observação doutras fratrias guerreiras da Europa...Tal e como apontei noutro artigo, Bândua/Cosus é o equivalente galaico de Odin e de Ógmios...deuses associados a estas organizações guerreiras. Por enquanto teremos que traçar paralelismos para nos achegarmos aos guerreiros galaicos.
Diz o Ynglingasaga, 6.: "Os seus homens (de Odin) atacavam sem proteção, raivosos como cães ou lobos, travando  nos seus escudos, fortes como ursos e touros. Matavam aos seus inimigos mas resultavam invulneráveis ao lume e ao ferro. É o que se chama furor dos Berserker". O caráter distintivo dos Berserker e dos Ulfhednar são as peles de animais com as que se recobrem. De urso no primeiro caso e de lobo no segundo. O facto de levar peles de animais pode ser devido a realização da sua prova iniciática na que após se introduzir na floresta, terá de dar caça a um urso ou um lobo para adquirir o seu poder. Segundo H.R Ellis, o urso simboliza o "campeão solitário" e o lobo ao novo guerreiro habitante das florestas.
Para G. Dumézil, os berserker de Odin não só se assimilavam a lobos ou ursos mas também é que se transformavam neles. Citando a Antonio Balboa Salgado: "Nas sagas escandinavas, alguns guerreiros aparecem em sonhos ou na realidade com forma de animal. De tal jeito, o furor ajudava a exteriorizar o segundo ser que vivia dentro deles. Portanto, o aspecto exterior manifestava e reafirmava (pintando o corpo de preto ou vestindo peles) o seu verdadeiro ser".
Poderiam, portanto, se transformarem em animais ao igual que Odin. Dentro de estes guerreiros, Odin elegia para a sua comitiva aos "enherjar"; guerreiros que treinavam no Valhalla para a luta final do Ragnarok. O enteógeno por excelência destas fratrias guerreiras era, novamente, a Amanita Muscária. A vinculação de Odin com a Amanita Muscária é clara. "Dizia-se que quando o deus Odin galopava sobre o seu cavalo, da boca caia uma escuma vermelha que, ao chegar ao chão, se transformava no fungo" (Breve historia de los vikingos p.31).
Uma fratria celta sobre a que temos mais dados é a dos Fianna, dirigida por Fionn Mac Cumhaill. Associados aos Deuses dos Laços (Ogma) ou a Lugh, eram guerreiros obscuros e carregados de furor bélico. O seu contato com o Sidh, o Além, é patente. Mas sobre tudo eram conduzidos por meio de animais tal e como seriam conduzidos os caçadores-guerreiros galaicos da Idade do Bronze. Temos evidências de transformações, de transes extáticos entre os celtas.
Citando ao Professor e Académico Higino Martins Esteves (As Tribos Caláicas): "Estudando as pegadas de épica céltica em Castro Leboreiro, vimos seu herói CúChulainn "Cão de Culann". De Cúchulainn é a “riastrad” (contorçom), que sofria ao entrar em transe de fúria. Cria-o eu mero exagero arcaico. Agora vejo experiências cenestésicas dos guerreiros intoxicados acantonadas na memória do herói máximo. O eriçar de cabelos notará a concentrada sensaçom de tensom. O fio de sangue no coruto seria imagem cenestésica da pressom sanguínea, que cristalizou no tufo dos capacetes indo-europeus (apontam vertiginosa antiguidade desse imaginar). O olho único -além de remedar o pai divino Lugus na batalha-, junto das contorções dos membros, também nasce da cenestesia alucinada. A "Lón (luan) Laith" (luz do herói), o maior mistério da "riastrad", talvez seja a luz interior que acompanha a exaltaçom física, nom lume projetado”.
Há mais. Um relato sobre CúChulainn fala-nos da fúria que era capaz de desencadear. Foi tanta a euforia á que chegou um dia, que o seu próprio tio temeu a chegada de do herói à corte, pola virtude das suas mulheres e pela vida dos seus guerreiros. Isto aconteceu depois de cortar as cabeças dos soldados duma fortaleza, capturou a dous cervos gigantes e matou com duas pedradas duas dúzias de cisnes. Então capturaram ao nosso protagonista e introduziram-no num caldeiro de água fria...mas ficou vazio. Repetiram a operação e a água começou a ferver. Ao enchê-lo pola terceira vez, a agua simplesmente aqueceu. Finalmente conseguiram tranquilizar ao mítico guerreiro. O herói celto-irlandês seria capaz de desencadear esta fúria nas posteriores batalhas.
Todo isto fala-nos dum rito iniciático, já que o Cúchulainn é o cão de Culam. Adquiriu o seu nome (antes era Setanta) após vencer a este cão. O guerreiro identifica-se portanto com este animal ao igual que os berserker com os ursos ou os ulfhednar com os lobos. Mas Cúchulainn também é capaz de desencadear transes. Se os berserker estavam vinculados com Odin, a vinculação de Cúchulainn com Ogma é clara, tal e como apontamos no passado artigo. Também Fionn imitava a este deus obscuro. Ógmios na Gália e Ogma na Irlanda, está emparentado com o grego Ogmos (linha,fila,caminho) relacionado também com Hégemon (guia, general). Ogmios é um marte celta identificado com Herakles por ir recoberto com uma pele de fera. Essa pele de fera é de novo a mostra de que o deus está vinculado com um animal no que se transforma. Este deus aparece também como um personagem sombrio vestida de preto que aparece com jovens encadeados a ele. De facto sabemos que existia uma classe de guerreiros celtas que combatiam encadeados para imitar o deus ao que se encomendavam. 
Se voltamos a vinculação de Marte e Ogmios vemos que estes dous deuses similares têm uma caraterística comum no que diz respeita da transformação em fera pois se Ógmios porta uma pelica, Marte está vinculado com o lobo. No mundo clássico também Zeus e Apolo estão vinculados com o lobo. É interessante apontar a que numa sauna relacionada com ritos iniciáticos dórios em Thera (Grécia) há uma inscrição dedicada a Apolo Lykeios, uma divindade que segundo Peter Anglesey também tem a ver com o transe extático praticado por meio da "quietude" em covas mercê ao isolamento sensorial. Vemos portanto que estes deuses têm em comum a fereza, a vinculação com um animal psicopompo e o transe extático....mas existia isto entre os Galaicos?.
Como bem apontamos noutro artigo, no contexto celto-atlântico no que nos achamos, Bândua é o equivalente galaico de Ógmios/Ogma, muito similar ao Odin germânico. Como deus dos laços, os guerreiros se vinculavam a ele. Se fizermos uma nova análise dos seus epítetos podemos tirar dados interessantes: Aetóbrigus "a fortaleça dos fogosos" ou "fogosamente forte" e Roudeacus "vermelho". Essa fogosidade, esse furor que faz ao deus avermelhar é o mesmo furor dos berserker, dos ulfhednar...é a “riastrad” e a fúria de Cúchulainn que adquire tais dimensões que é necessário introduzi-lo em caldeiros com água fria. 
Os galaicos conheciam as propriedades da Amanita Muscária e obviamente eram capazes de desencadear os transes que os levavam a lutar com furor na batalha. Esse fungo provavelmente estivesse vinculado com Bândua, da mesma forma do que o está com Odin e igualmente do que a fúria, a fortaleza e transe traça uma relação entre Ógmios/Ogme e Cúchulainn. Alguns dos capacetes galaicos podem ser uma alegoria a essa pressão craniana que se sente por vezes num transe de fúria extática, o “Lón Laith” (a luz do herói). Muitas representações de guerreiros celtas fazem uma alegoria a animais-espírito com os que se vinculam, javalis, aves etc... mas também é possível a representação da vinculaçao com o animal por meio da fúria, os tufos e o pelo ouriçado. Mas...vestiam os guerreiros galaicos com peles de lobo ou urso? Eu acho que sim.
Temos várias testemunhas com respeito a guerreiros celtas da P.Ibérica que realizavam dita prática. Há duas representações iconográficas: A estela de Zurita e o Vaso dos guerreiros de Numância. Mas também Apiano (Iber. 48) relata como no 142 a.C. os habitantes de Nertóbriga na Celtibéria enviaram a Marcelo, um mensageiro vestido com pele de lobo para solicitar a paz. Na Gallaecia temos por uma parte Artódio- "ossuno, urssino", que para o Professor Higino Martins é o topónimo perdido da terra do  Carvalhinho (As tribos caláicas p 493-494). Temos nestas terras Beariz (chefe, urso), o Mosteiro de Useira (Ursaria: terra de ursos) e o seu leste a Serra Martinha (Serra Martiniana, a dos Martinii) que faz referência a Marte, o guerreiro. Estas e outras evidências concordam com a vinculação do urso, animal que representava a classe guerreira no mundo indo-europeu. 
Temos por outro lado uma evidência no Castro Leboreiro (Concelho de Monção) em relação com o cânido que também aponta o Professor Martins. Topónimos como Quinjo, Lobeira e Penagache estão relacionados etimologicamente com os cânidos. A treba desde território era a dos *KWARKERNOI (Quarcerni) que para o autor está relacionado etimologicamente com "os dos capacetes ornados ou tufos" quer dizer a representação do preto sangue elevado pelo coruto da cabeça que caracterizava a Cúchulainn e ao transe extático guerreiro. Para além disto, em certos pontos da terra ocupada por esta tribo (teuta), rendia-se culto a Bândua. Vemos nesta altura uma vinculação entre Bândua e as fratrias relacionadas com o transe e a transformação em animal muito semelhante a Odin e os seus guerreiros assim como Cúchulainn e Ógmios/Ogma.



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