segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Os deuses obscuros galaicos


Por David Outeiro
Temos mais evidências da relação dum animal, a sua pelica e a transformação...nesta vez proveniente da mitologia galega atual. Segundo a crença, aquele que tem a capacidade de se converter em lobisomem, estará vinculado  a uma pelica. Essa pelica da que não se pode desfazer a vontade, é a que provoca a transformação. Para poder liberar a pessoa deste penar, dever-se-lhe-á fazer um corte na pele enquanto está transformado em lobo, e assim permitir-lhe regressar a sua condição de homem.
Faço neste ponto uma reflexão: Odin e Ógmios/Ogma são deuses psycopompos, deuses guerreiros, mas também deuses do conhecimento. Odin adentrou-se na terra dos gigantes para beber do poço de Mimir baixo a forma dum caminhante chamado Vegtamr. Mas Mimir disse-lhe que se queria beber e obter o conhecimento, teria que perder o seu olho esquerdo...Odin aceitou.
Odin vendo a Mimir sem cabeça
É interessante apontar que a parte esquerda está vinculada com a visão do Além e do conhecimento. Um ara votiva achada na Galiza fazia referência a um "Lar ceciegaeco" um deus cego. Odin também se conhece com o epíteto de Bileygr (Chosco)  e precisamente na mitologia galega existe um tal Pedro Chosco que incide ao sono...e o mundo onírico é um meio de contato com a realidade do Além. Mas Odin também é Erilaz "o sábio das runas", uma mostra da sua sabedoria. Oghmios chegou a inventar o alfabeto Oghámico. Se Odin era um caminhante que acedeu a beber na fonte do conhecimento, se Cuchulainn  era Setanta (o caminhante) e está vinculado aos deuses dos laços e mas também se lhe salta um olho no combate, podemos perceber o significado da iniciação como aceso ao conhecimento, o aceso à parte oculta do trisquel de Briteiros. É o aceso a um novo ser, depois daqui os deuses e os homens relacionam-se com o Além. Após o renascimento, surgem os guerreiros...homens e deuses obscuros ficam ligados deste jeito. Provavelmente existissem crenças similares em relação a Bândua. No caso dos guerreiros celtas ressuscitados terão que pagar um preço: a perda da fala. No caso de Portalém, no Monte do Seixo, aquele que revele os segredos do Além ficará com a voz rouca.

Façamos nesta altura uma recapitulação: temos por uma parte os ritos iniciáticos da Idade do Bronze e por outra os da Idade do Ferro. Mas este tipo de ritos têm algo em comum. Tanto na caça selvagem como nos rituais no interior das saunas, os caçadores e guerreiros têm que passar uma morte iniciática. Após esta morte adquirem um novo papel na sua vida e vinculam-se a um deus. Se os galaicos da Idade do Ferro se vinculavam a Bândua, quem era esse ídolo-cilíndro de olhos midriáticos dos petróglifos?. Uma caraterística dos ídolo-cilindros que supervisam a caça selvagem é o da sua marcada olhada. No transcurso da historia e do planeta, sempre se lhes atribuiu aos xamãs o facto de possuírem uma olhada profunda e marcada. Também em muitos jazigos arqueológicos se pus especial cuidado em preservar  a vista dos crânios mediante a incrustação de certos materiais. Mas essa olhada profunda midríatica faz alusão à capacidade do xamã de perceber as realidades que estão além da perceção ordinária: o Além. Deuses coma Odin tiveram que passar uma prova para adquirirem a sua sabedoria, ao igual que os xamãs passam uma prova iniciática. Mas a pesar de que este deus perdesse um olho em troca do conhecimento, há epítetos que fazem referência a essa capacidade de ver o Além. Estes  epítetos são Báleygr "olho flamejante, o furtivo observado" e Bileygr "olho que destelha, olho que brilha". Pois bem, se há um  deus que supervisa os ritos iniciáticos dos caçadores-guerreiros da Idade do Bronze com a sua marcada olhada poderíamos imaginar de quem se trata. Esse deus poderia ser o Odin galaico: Bândua. Mas a mitologia galega também nos fala dum alto fantasma que em ocasiões dirige uma comitiva nocturna: a Estadeia. Este fantasma que poderia ser a continuidade deste deus obscuro, descreve-se com uma olhada vermelha.
A Estadeia
Fica ainda uma questão referida ao final da vida dos guerreiros vinculados a Bândua. Aqueles que morriam na batalha poderiam acompanhar a este deus até o Além, pode que atando-se a uma árvore ao igual que fez Cuchulainn no momento da sua morte. Mas existe outro jeito de atingir este final que foi testemunhado entre os galaicos e que como não podia ser doutro jeito tem paralelismos com os demais povos celtas. Estamos a falar do episódio do Monte Medúlio e o simbolismo do teixo. O deus Ogma estava vinculado com o teixo, no qual se escrevia o alfabeto oghámico. As fratrias guerreiras estabeleciam um vinculo com o teixo, ao igual que com o deus. É por isso que o escudo do herói Fionn foi realizado com madeira dum teixo que brotou onde caiu o venenoso olho de Balor: um gigante Fomoré abatido por Lugh. Durante a fabricação do escudo morreram nove homens por causa do vapor que soltavam as raízes...e certamente o teixo (taxus baccata) contém alcalóides tóxicos. Também achamos outros vínculos entre guerreiros celtas e o teixo...assim Eochaid é "o que combate pelo teixo". Os Eburões  ou Eburóvices eram "os combatentes do teixo", os Álbiones Buroflavienses (que deram lugar ao topónimo das Terras de Burão) também fazem referência a esta árvore sacra e ao deus Dagda chamava-se-lhe Eochu "que combate com o teixo". Temos que lembrar que Dagda aparece como companheiro de Ogma. O teixo é Ogma e portanto representa o seu vínculo. No ano 22 a.C., no Monte Medúlio resistiam os "últimos" galaicos, astures e cântabros perante o assédio do exército romano dirigido por Caio Fúrnio e Públio Caríssio. A etimologia de Medúlio provém de MEDULLIOS "da embriaguez", similar ao nome céltico Medúgena "nascida da embriaguez". Citando a Lúcio Anneo Floro: "Por último teve lugar o assedio do Monte Medúllio, sobre o qual, depois de  cercá-lo com um fojo contínuo de quinze milhas, avançaram a um tempo os romanos por todas partes. Quando os bárbaros se vem reduzidos a extrema necessidade, a porfia, no meio de um festim, deram-se morte com o fogo, a espada e o veneno que lá costumavam extrair dos teixos. Assim a maior parte livrou-se da escravatura, que a uma gente até então indómita parecia mais intolerável do que a morte...". Portanto, o que fizeram os galaicos foi suicidarem-se antes de serem escravizados e assim obterem a imortalidade e acudir com o seu deus, neste caso Bândua, até o Além. É interessante salientar que no século passado, quando um velho estava a morrer em Taramundi, davam-lhe bagas de teixo para que morre-se com tranquilidade. O teixo está por isso vinculado ao âmbito funerário, presente nos cemitérios galegos e próximo as igrejas. Já para os povos celtas existia esta clara ligação do teixo como a árvore do Além.
O Monte Medúlio
Ainda tendo o guerreiro que aguardar até a sua morte para partir com o seu deus, os encontros em vida com os guerreiros do Sidh é comum. No relato do Echtra Nerai, do que falamos num artigo passado, o protagonista topa-se com a hoste das Fairies (as nossas mouras) após ter a trágica visão da morte dos seus companheiros de Cruachan. Foi quando o Nera pus-se à fila da hoste:
-Há um homem na nossa hoste! -diz o que estava mais próximo ao Nera
-Mais pesadas são as suas pegadas! -diz o seu camarada seguinte na bicha e cada um foi  repetindo essa frase ao anterior, desde o último até o primeiro.
Depois chegaram ao Sidh de Cruachan e entraram. Imediatamente apresentaram as cabeças dos guerreiros de Cruachan ao rei do Sidh.
-Que é o que faremos com o homem que veio connosco? -diz um.
-Deixai que venha, hei de falar com ele! -diz o rei.
Aproximou-se ao Nera e disse-lhe:
-Que é que foi o que te fez vir ao Sidh com os guerreiros?
-Vim acompanhando a Hoste -diz Nera-.  E foi que o rei o aceitou entre os seus.
A semelhança com a Companha, que é uma hoste que provém do Além como agoiro da morte ou "captora" de vivos é clara.
 Existe outro episódio narrado no Mabinogion galês no que o protagonista se topa com um rei do Além durante uma caçaria. Pwyll, príncipe de Dyfed acha-se caçando em Glyn Cuch mas por acidente acaba separando-se dos seus companheiros. É então  que vê a uns cães brancos com orelhas vermelhas (sinal de que pertencem ao Além) perseguindo a um  cervo macho. Pwyll tenta espantar os cães da presa quando aparece um homem que despreza a sua conduta. É Arawn, Rei de Annfwn. Posteriormente este rei comenta-lhe ao protagonista que está em conflito com um rei chamado Hafgan. Perante isso é que o Arawn lhe diz a Pwyll que para solucionarem as suas diferenças deverão enfrentar-se a este rei transcorrido um ano. Enquanto trocam os papeis. Dirige um o reino do outro e mesmo chegam a se transformarem o um no outro nas formas para fazê-lo. Finalmente tem lugar a batalha e Pwyll vence e voltam às suas respetivas formas e reinos. Arawn acha positiva  a conduta respeitosa que Pwyll teve com  a sua mulher e como recompensa o rei mortal adquire um novo título: Pwyll Pen Annwn (Caudilho de Annwn).
Pwyll Pen Annwn
As hostes de guerreiros que vêm do Além e a caçaria selvagem estão vinculados assim, como também têm a ver com os deuses dos laços que levam aos guerreiros ao Além. Esta ideia podemo-la ver no Caldeiro de Gundestrup e em Orca dos Juncães. Numa representação do Caldeiro, aparece uma cena na que uns guerreiros se dirigem até um deus que porta um caldeiro. Um cão psycompompo olha os guerreiros que se achegam até o deus que ele precede. A continuação este deus, que se pode tratar de Dagda (companheiro de Ogma/Ogmios) com o seu caldeiro da regeneração, introduz os guerreiros afogando-os no recipiente. Isto supõe um trânsito da vida à morte ou da morte à vida...e desse trânsito saem uns novos guerreiros. Esses guerreiros portam nos seus capacetes distintos "animais-espírito" com os que se querem vincular e obterem a proteção dum deus: o fero javali, uma ave, os cornos dum cervídeo e um tufo que indica a cristalização da euforia guerreira. Os guerreiros vão dirigidos por uma "serpe", animal ctónico e símbolo iniciático por excelência, guarda os segredos aos que muitos desejam aceder. Estamos perante o que alguns autores asseguram que se trata da "caçaria selvagem" ou "mesnada".

No que diz respeito de todo isto quereremos relacionar agora a representação mais antiga da caçaria selvagem no nosso território: Uma ideia arcaica refletida no ortostato duma anta de Orca dos Juncães. Esta pintura hoje está degradada, fica só o desenho feito por George e Vera Leisner. Vemos na pintura uma cena presidida por um grande ídolo-cilindro. Nesta cena aparecem os grandes cervídeos que os caçadores iniciados, neste caso do neolítico, deverão abater. Os caçadores parecem contar com a ajuda de cães, animais com os que o homem sempre esteve vinculado e que emprega tanto para a caça como para a guerra...É o psycopompo vinculado aos guerreiros que aparece no caldeiro de Gundestrup. Neste caso chama a atenção que um dos caçadores leva uma espécie de tufo, será a mesma ideia da representação da fúria do transe extático que cristalizou nos tufos dos capacetes guerreiros?.
Anta da Orca dos Juncães
Se fizermos uma reflexão podemos compreender a ligação entre a caçaria selvagem e os exércitos da noite. Nas representações xamánicas das covas franco-cantábricas -a mais antiga manifestação deste fenómeno-, aparece a ideia do controlo dos animais. Os caçadores-coletores do paleolítico superior, integrados em sociedades muito pouco estratificadas e hierarquizadas, teriam de se preocuparem pela obtenção de presas para a sua subsistência. Então os xamãs após realizarem o transe, chegavam à êxtase transformados em animais-espírito. Uma vez transformados, começariam uma dança mágica para controlar os rebanhos de caça e propiciar portanto a captura de animais por parte dos caçadores. As sociedades fazem-se mais complexas e estratificadas e por isso os conflitos teriam de ir em aumento. A caça pôde começar a se relacionar com a guerra, e os ritos iniciáticos com os caçadores-guerreiros. As povoações tinham que se preocuparem da subsistência mas também da sobrevivência em relação a confrontação bélica. Era necessário controlar os espíritos malignos assim como controlar a alma dos inimigos e influir sobre elas. Nesta altura os sacerdotes deveriam de se encarregarem desse papel. Mas já com os deuses obscuros não só se caçariam só animais, também era momento de caçar almas humanas. Acho que é por isso que a caçaria selvagem, relacionada com os exércitos da noite, seria perigosa para os vivos.

Entrevista ao David Outeiro na Rádio Galega. Fala sobre o Deus Bândua:
http://www.crtvg.es/rg/a-carta/milenio-milenio-do-dia-31-01-2012-228248

1 comentário:

Anónimo disse...

Com "tufo" queres dizer fumo? Não entendim bem

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