segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Os deuses obscuros galaicos


Por David Outeiro
Temos mais evidências da relação dum animal, a sua pelica e a transformação...nesta vez proveniente da mitologia galega atual. Segundo a crença, aquele que tem a capacidade de se converter em lobisomem, estará vinculado  a uma pelica. Essa pelica da que não se pode desfazer a vontade, é a que provoca a transformação. Para poder liberar a pessoa deste penar, dever-se-lhe-á fazer um corte na pele enquanto está transformado em lobo, e assim permitir-lhe regressar a sua condição de homem.
Faço neste ponto uma reflexão: Odin e Ógmios/Ogma são deuses psycopompos, deuses guerreiros, mas também deuses do conhecimento. Odin adentrou-se na terra dos gigantes para beber do poço de Mimir baixo a forma dum caminhante chamado Vegtamr. Mas Mimir disse-lhe que se queria beber e obter o conhecimento, teria que perder o seu olho esquerdo...Odin aceitou.
Odin vendo a Mimir sem cabeça
É interessante apontar que a parte esquerda está vinculada com a visão do Além e do conhecimento. Um ara votiva achada na Galiza fazia referência a um "Lar ceciegaeco" um deus cego. Odin também se conhece com o epíteto de Bileygr (Chosco)  e precisamente na mitologia galega existe um tal Pedro Chosco que incide ao sono...e o mundo onírico é um meio de contato com a realidade do Além. Mas Odin também é Erilaz "o sábio das runas", uma mostra da sua sabedoria. Oghmios chegou a inventar o alfabeto Oghámico. Se Odin era um caminhante que acedeu a beber na fonte do conhecimento, se Cuchulainn  era Setanta (o caminhante) e está vinculado aos deuses dos laços e mas também se lhe salta um olho no combate, podemos perceber o significado da iniciação como aceso ao conhecimento, o aceso à parte oculta do trisquel de Briteiros. É o aceso a um novo ser, depois daqui os deuses e os homens relacionam-se com o Além. Após o renascimento, surgem os guerreiros...homens e deuses obscuros ficam ligados deste jeito. Provavelmente existissem crenças similares em relação a Bândua. No caso dos guerreiros celtas ressuscitados terão que pagar um preço: a perda da fala. No caso de Portalém, no Monte do Seixo, aquele que revele os segredos do Além ficará com a voz rouca.

Façamos nesta altura uma recapitulação: temos por uma parte os ritos iniciáticos da Idade do Bronze e por outra os da Idade do Ferro. Mas este tipo de ritos têm algo em comum. Tanto na caça selvagem como nos rituais no interior das saunas, os caçadores e guerreiros têm que passar uma morte iniciática. Após esta morte adquirem um novo papel na sua vida e vinculam-se a um deus. Se os galaicos da Idade do Ferro se vinculavam a Bândua, quem era esse ídolo-cilíndro de olhos midriáticos dos petróglifos?. Uma caraterística dos ídolo-cilindros que supervisam a caça selvagem é o da sua marcada olhada. No transcurso da historia e do planeta, sempre se lhes atribuiu aos xamãs o facto de possuírem uma olhada profunda e marcada. Também em muitos jazigos arqueológicos se pus especial cuidado em preservar  a vista dos crânios mediante a incrustação de certos materiais. Mas essa olhada profunda midríatica faz alusão à capacidade do xamã de perceber as realidades que estão além da perceção ordinária: o Além. Deuses coma Odin tiveram que passar uma prova para adquirirem a sua sabedoria, ao igual que os xamãs passam uma prova iniciática. Mas a pesar de que este deus perdesse um olho em troca do conhecimento, há epítetos que fazem referência a essa capacidade de ver o Além. Estes  epítetos são Báleygr "olho flamejante, o furtivo observado" e Bileygr "olho que destelha, olho que brilha". Pois bem, se há um  deus que supervisa os ritos iniciáticos dos caçadores-guerreiros da Idade do Bronze com a sua marcada olhada poderíamos imaginar de quem se trata. Esse deus poderia ser o Odin galaico: Bândua. Mas a mitologia galega também nos fala dum alto fantasma que em ocasiões dirige uma comitiva nocturna: a Estadeia. Este fantasma que poderia ser a continuidade deste deus obscuro, descreve-se com uma olhada vermelha.
A Estadeia
Fica ainda uma questão referida ao final da vida dos guerreiros vinculados a Bândua. Aqueles que morriam na batalha poderiam acompanhar a este deus até o Além, pode que atando-se a uma árvore ao igual que fez Cuchulainn no momento da sua morte. Mas existe outro jeito de atingir este final que foi testemunhado entre os galaicos e que como não podia ser doutro jeito tem paralelismos com os demais povos celtas. Estamos a falar do episódio do Monte Medúlio e o simbolismo do teixo. O deus Ogma estava vinculado com o teixo, no qual se escrevia o alfabeto oghámico. As fratrias guerreiras estabeleciam um vinculo com o teixo, ao igual que com o deus. É por isso que o escudo do herói Fionn foi realizado com madeira dum teixo que brotou onde caiu o venenoso olho de Balor: um gigante Fomoré abatido por Lugh. Durante a fabricação do escudo morreram nove homens por causa do vapor que soltavam as raízes...e certamente o teixo (taxus baccata) contém alcalóides tóxicos. Também achamos outros vínculos entre guerreiros celtas e o teixo...assim Eochaid é "o que combate pelo teixo". Os Eburões  ou Eburóvices eram "os combatentes do teixo", os Álbiones Buroflavienses (que deram lugar ao topónimo das Terras de Burão) também fazem referência a esta árvore sacra e ao deus Dagda chamava-se-lhe Eochu "que combate com o teixo". Temos que lembrar que Dagda aparece como companheiro de Ogma. O teixo é Ogma e portanto representa o seu vínculo. No ano 22 a.C., no Monte Medúlio resistiam os "últimos" galaicos, astures e cântabros perante o assédio do exército romano dirigido por Caio Fúrnio e Públio Caríssio. A etimologia de Medúlio provém de MEDULLIOS "da embriaguez", similar ao nome céltico Medúgena "nascida da embriaguez". Citando a Lúcio Anneo Floro: "Por último teve lugar o assedio do Monte Medúllio, sobre o qual, depois de  cercá-lo com um fojo contínuo de quinze milhas, avançaram a um tempo os romanos por todas partes. Quando os bárbaros se vem reduzidos a extrema necessidade, a porfia, no meio de um festim, deram-se morte com o fogo, a espada e o veneno que lá costumavam extrair dos teixos. Assim a maior parte livrou-se da escravatura, que a uma gente até então indómita parecia mais intolerável do que a morte...". Portanto, o que fizeram os galaicos foi suicidarem-se antes de serem escravizados e assim obterem a imortalidade e acudir com o seu deus, neste caso Bândua, até o Além. É interessante salientar que no século passado, quando um velho estava a morrer em Taramundi, davam-lhe bagas de teixo para que morre-se com tranquilidade. O teixo está por isso vinculado ao âmbito funerário, presente nos cemitérios galegos e próximo as igrejas. Já para os povos celtas existia esta clara ligação do teixo como a árvore do Além.
O Monte Medúlio
Ainda tendo o guerreiro que aguardar até a sua morte para partir com o seu deus, os encontros em vida com os guerreiros do Sidh é comum. No relato do Echtra Nerai, do que falamos num artigo passado, o protagonista topa-se com a hoste das Fairies (as nossas mouras) após ter a trágica visão da morte dos seus companheiros de Cruachan. Foi quando o Nera pus-se à fila da hoste:
-Há um homem na nossa hoste! -diz o que estava mais próximo ao Nera
-Mais pesadas são as suas pegadas! -diz o seu camarada seguinte na bicha e cada um foi  repetindo essa frase ao anterior, desde o último até o primeiro.
Depois chegaram ao Sidh de Cruachan e entraram. Imediatamente apresentaram as cabeças dos guerreiros de Cruachan ao rei do Sidh.
-Que é o que faremos com o homem que veio connosco? -diz um.
-Deixai que venha, hei de falar com ele! -diz o rei.
Aproximou-se ao Nera e disse-lhe:
-Que é que foi o que te fez vir ao Sidh com os guerreiros?
-Vim acompanhando a Hoste -diz Nera-.  E foi que o rei o aceitou entre os seus.
A semelhança com a Companha, que é uma hoste que provém do Além como agoiro da morte ou "captora" de vivos é clara.
 Existe outro episódio narrado no Mabinogion galês no que o protagonista se topa com um rei do Além durante uma caçaria. Pwyll, príncipe de Dyfed acha-se caçando em Glyn Cuch mas por acidente acaba separando-se dos seus companheiros. É então  que vê a uns cães brancos com orelhas vermelhas (sinal de que pertencem ao Além) perseguindo a um  cervo macho. Pwyll tenta espantar os cães da presa quando aparece um homem que despreza a sua conduta. É Arawn, Rei de Annfwn. Posteriormente este rei comenta-lhe ao protagonista que está em conflito com um rei chamado Hafgan. Perante isso é que o Arawn lhe diz a Pwyll que para solucionarem as suas diferenças deverão enfrentar-se a este rei transcorrido um ano. Enquanto trocam os papeis. Dirige um o reino do outro e mesmo chegam a se transformarem o um no outro nas formas para fazê-lo. Finalmente tem lugar a batalha e Pwyll vence e voltam às suas respetivas formas e reinos. Arawn acha positiva  a conduta respeitosa que Pwyll teve com  a sua mulher e como recompensa o rei mortal adquire um novo título: Pwyll Pen Annwn (Caudilho de Annwn).
Pwyll Pen Annwn
As hostes de guerreiros que vêm do Além e a caçaria selvagem estão vinculados assim, como também têm a ver com os deuses dos laços que levam aos guerreiros ao Além. Esta ideia podemo-la ver no Caldeiro de Gundestrup e em Orca dos Juncães. Numa representação do Caldeiro, aparece uma cena na que uns guerreiros se dirigem até um deus que porta um caldeiro. Um cão psycompompo olha os guerreiros que se achegam até o deus que ele precede. A continuação este deus, que se pode tratar de Dagda (companheiro de Ogma/Ogmios) com o seu caldeiro da regeneração, introduz os guerreiros afogando-os no recipiente. Isto supõe um trânsito da vida à morte ou da morte à vida...e desse trânsito saem uns novos guerreiros. Esses guerreiros portam nos seus capacetes distintos "animais-espírito" com os que se querem vincular e obterem a proteção dum deus: o fero javali, uma ave, os cornos dum cervídeo e um tufo que indica a cristalização da euforia guerreira. Os guerreiros vão dirigidos por uma "serpe", animal ctónico e símbolo iniciático por excelência, guarda os segredos aos que muitos desejam aceder. Estamos perante o que alguns autores asseguram que se trata da "caçaria selvagem" ou "mesnada".

No que diz respeito de todo isto quereremos relacionar agora a representação mais antiga da caçaria selvagem no nosso território: Uma ideia arcaica refletida no ortostato duma anta de Orca dos Juncães. Esta pintura hoje está degradada, fica só o desenho feito por George e Vera Leisner. Vemos na pintura uma cena presidida por um grande ídolo-cilindro. Nesta cena aparecem os grandes cervídeos que os caçadores iniciados, neste caso do neolítico, deverão abater. Os caçadores parecem contar com a ajuda de cães, animais com os que o homem sempre esteve vinculado e que emprega tanto para a caça como para a guerra...É o psycopompo vinculado aos guerreiros que aparece no caldeiro de Gundestrup. Neste caso chama a atenção que um dos caçadores leva uma espécie de tufo, será a mesma ideia da representação da fúria do transe extático que cristalizou nos tufos dos capacetes guerreiros?.
Anta da Orca dos Juncães
Se fizermos uma reflexão podemos compreender a ligação entre a caçaria selvagem e os exércitos da noite. Nas representações xamánicas das covas franco-cantábricas -a mais antiga manifestação deste fenómeno-, aparece a ideia do controlo dos animais. Os caçadores-coletores do paleolítico superior, integrados em sociedades muito pouco estratificadas e hierarquizadas, teriam de se preocuparem pela obtenção de presas para a sua subsistência. Então os xamãs após realizarem o transe, chegavam à êxtase transformados em animais-espírito. Uma vez transformados, começariam uma dança mágica para controlar os rebanhos de caça e propiciar portanto a captura de animais por parte dos caçadores. As sociedades fazem-se mais complexas e estratificadas e por isso os conflitos teriam de ir em aumento. A caça pôde começar a se relacionar com a guerra, e os ritos iniciáticos com os caçadores-guerreiros. As povoações tinham que se preocuparem da subsistência mas também da sobrevivência em relação a confrontação bélica. Era necessário controlar os espíritos malignos assim como controlar a alma dos inimigos e influir sobre elas. Nesta altura os sacerdotes deveriam de se encarregarem desse papel. Mas já com os deuses obscuros não só se caçariam só animais, também era momento de caçar almas humanas. Acho que é por isso que a caçaria selvagem, relacionada com os exércitos da noite, seria perigosa para os vivos.

Entrevista ao David Outeiro na Rádio Galega. Fala sobre o Deus Bândua:
http://www.crtvg.es/rg/a-carta/milenio-milenio-do-dia-31-01-2012-228248

domingo, 15 de janeiro de 2012

As confrarias guerreiras galaicas. O transe guerreiro e os deuses obscuros


Por David Outeiro

Continuamos tentando resolver o enigma que vincula a caça selvagem aos ritos de iniciação galaicos e os deuses obscuros. Agora avançamos até a Idade do Ferro, a Kalláikia, posteriormente Gallaecia. Neste período, esta terra conta já com povoados fortificados em todo o seu território. São os castros. Evidencias da belicosidade dum povo composto por múltiplas trebas guerreiras.
Neste caso achamos novos ritos de iniciação associados a fratrias guerreiras. A existência de confrarias guerreiras galaicas é evidente, existindo inclusivamente o epígrafe Lanceroi (Vilar de Perdizes) que faz referência a guerreiros armados com lanças. Diz Estrabo a respeito dos povos que habitavam as ribeiras do Douro que comiam uma vez ao dia, com limpeza e sobriedade se banhavam em agua fria, tomando com frequência banhos de vapor. Também diz que utilizavam pedras candentes ao igual que os espartanos, pondo em relação costumes guerreiros. As saunas galaicas ou Pedras Formosas são a evidência da realização deste tipo de rituais. Estas construções podem ter uma origem muito antiga. Já nas Ilhas Britânicas existiam as burnt mounds, saunas da Idade do Bronze.
Numa citação o Almagro Gorbea diz: "Uma tradição muito antiga, a que caberia supor uma raiz indo-europeia, a julgar pela ideologia que implica, os povos que a praticavam e a sua estreita associação a confrarias de guerreiros"
Estas construções são um bom exemplo dum rito de iniciação apresentando-nos inclusivamente uma simbologia reveladora. Temos de observar neste momento, a sauna de Briteiros e a sua simbologia composta por um trisquel levógiro, um dextrógiro e um "inexistente" que harmoniza a composição.
Citando a José Inácio Regueiro Castro: "As aspas que viram no sentido horário nos trisqueis projetam a energia de cara a nós. Para quem observar, pela contra, se o giro é anti-horário, tiram da energia para o interior da superfície onde estão grafados. É o trisquel, segundo a orientação, gerador ou destrutor ...Além de vermos, na pedra formosa de Briteiros, que se sinala antiteticamente o progresso e o retrocesso, a construção e a destruição, podemos intuir que estamos perante da terceira aspa que não podemos perceber, ou que não temos possibilidade de sentir desde a herança greco-latina imperante."
Esta é para mim uma clara simbologia associada a um rito de iniciação e portanto à morte ritual daquele que aspira a ser um guerreiro integrado na fratria. Quando o aspirante a guerreiro entra na sauna, primeiro entra no vestíbulo, depois se passa a antecâmara...onde se acha frente a "pedra formosa". Neste momento deu dous passos, o terceiro implicará o seu renascimento. Introduzir-se-á pelo oco da pedra formosa e acederá à câmara interior. Chegou o momento do renascimento, mas em que consiste?. O ciclo do guerreiro está vinculado ao trisquel, um ciclo necessário para o seu novo ser A pessoa nasce e cresce e neste período vai formando o seu ego, enchendo a sua mente inconsciente a qual repercutirá na mente consciente. 
Segundo os psicólogos transpessoais e segundo as ensinanças xamãnicas, o rito iniciático ou de passagem é a resolução do conflito duma crise interna. Essa crise interna desestabiliza a harmonia do indivíduo. Passada esta crise, a pessoa adquire a firmeza dum novo sentido. O vida do guerreiro e a sua iniciação encaixa com o trisquel, o levógiro que é construtor...mas esta personalidade deverá mudar. O guerreiro começa a via de passagem, isto implica  a necessidade de rachar com o passado, de superar a crise. É o trisquel dextrógiro e destrutor que atrai a energia. Finalmente o guerreiro passará  a pedra formosa, que é uma "membrana" que o comunicará com outras realidades, com o Além...onde conhecerá esse trisquel que parece oculto. O guerreiro chegará portanto ao conhecimento mediante a indução dum estado alterado de consciência. Temos de ter em conta, que os guerreiros se encomendavam aos deuses da guerra, por isso é porque o transe extático poderá implicar esse vinculo sem retrocesso. 
Lembremos que dum ponto de vista etimológico o enteógeno está composto de “êntheos" (que têm um deus dentro) e “génos” (origem, tempo, nascimento). O enteógeno ou o estado alterado de consciência é aquilo capaz de despertar a consciência de deus no homem...é o acesso ao inconsciente e a confrontação com os medos tão necessária para o renascimento. É provável o uso de enteógenos neste tipo de construções se temos em conta certos elementos paralelos. Heródoto (IV,75, 1-2) testemunha o emprego de canábis pelos escitas em contextos similares. As saunas são, aliás, recintos propícios para acrescentar o efeito dos enteógenos em relação ao transe extático. "Portanto, estas construções oferecem o quadro mais propício para o emprego de alucinógenos como parte integrante de estes rituais de purificação e ritos de passagem que diversos autores vincularam a confrarias de guerreiros" (Almagro Gorbea e Álvarez-Sanchís, 1993; Almagro Gorbea e Moltó, 1992).
Finalmente o guerreiro pôde aceder a essa parte da realidade que está oculta como uma dimensão paralela na que adquire certos conhecimentos e constata com os deuses. Mas também pôde apreender a desencadear um transe de fúria guerreira do que falaremos a continuação. Desta experiência sairá um novo guerreiro, que após abandoar a sauna será incorporado à fratria.
Diz um provérbio Taoísta  que apanhei do Académico da AGLP, Artur Alonso Novelhe “Aquele que conhece aos demais é inteligente, aquele que se conhece a si mesmo se torna iluminando. Aquele que vence aos demais é forte, aquele que se vence a si próprio se torna invencível” e que continua com um comentário "Para vencer-te a ti mesmo, primeiro tens de conhecer-te… para conhecer-te tens que penetrar dentro de ti… e como bem explicam todas as mitologias do mundo, tens que vencer tuas sombras, para renascer na luz… Nesse renascimento voltas-te invencível… Isso dizem, aqueles que fizeram esse tipo de experiência…".
Já temos portanto dous ritos iniciáticos no passado galaico: a caça de animais e a entrada em saunas. Mas uma vez passado o rito iniciático, temos de fazer uma reflexão sobre os deuses dos guerreiros e sobre as suas novas capacidades. Comecemos por fazer uma observação doutras fratrias guerreiras da Europa...Tal e como apontei noutro artigo, Bândua/Cosus é o equivalente galaico de Odin e de Ógmios...deuses associados a estas organizações guerreiras. Por enquanto teremos que traçar paralelismos para nos achegarmos aos guerreiros galaicos.
Diz o Ynglingasaga, 6.: "Os seus homens (de Odin) atacavam sem proteção, raivosos como cães ou lobos, travando  nos seus escudos, fortes como ursos e touros. Matavam aos seus inimigos mas resultavam invulneráveis ao lume e ao ferro. É o que se chama furor dos Berserker". O caráter distintivo dos Berserker e dos Ulfhednar são as peles de animais com as que se recobrem. De urso no primeiro caso e de lobo no segundo. O facto de levar peles de animais pode ser devido a realização da sua prova iniciática na que após se introduzir na floresta, terá de dar caça a um urso ou um lobo para adquirir o seu poder. Segundo H.R Ellis, o urso simboliza o "campeão solitário" e o lobo ao novo guerreiro habitante das florestas.
Para G. Dumézil, os berserker de Odin não só se assimilavam a lobos ou ursos mas também é que se transformavam neles. Citando a Antonio Balboa Salgado: "Nas sagas escandinavas, alguns guerreiros aparecem em sonhos ou na realidade com forma de animal. De tal jeito, o furor ajudava a exteriorizar o segundo ser que vivia dentro deles. Portanto, o aspecto exterior manifestava e reafirmava (pintando o corpo de preto ou vestindo peles) o seu verdadeiro ser".
Poderiam, portanto, se transformarem em animais ao igual que Odin. Dentro de estes guerreiros, Odin elegia para a sua comitiva aos "enherjar"; guerreiros que treinavam no Valhalla para a luta final do Ragnarok. O enteógeno por excelência destas fratrias guerreiras era, novamente, a Amanita Muscária. A vinculação de Odin com a Amanita Muscária é clara. "Dizia-se que quando o deus Odin galopava sobre o seu cavalo, da boca caia uma escuma vermelha que, ao chegar ao chão, se transformava no fungo" (Breve historia de los vikingos p.31).
Uma fratria celta sobre a que temos mais dados é a dos Fianna, dirigida por Fionn Mac Cumhaill. Associados aos Deuses dos Laços (Ogma) ou a Lugh, eram guerreiros obscuros e carregados de furor bélico. O seu contato com o Sidh, o Além, é patente. Mas sobre tudo eram conduzidos por meio de animais tal e como seriam conduzidos os caçadores-guerreiros galaicos da Idade do Bronze. Temos evidências de transformações, de transes extáticos entre os celtas.
Citando ao Professor e Académico Higino Martins Esteves (As Tribos Caláicas): "Estudando as pegadas de épica céltica em Castro Leboreiro, vimos seu herói CúChulainn "Cão de Culann". De Cúchulainn é a “riastrad” (contorçom), que sofria ao entrar em transe de fúria. Cria-o eu mero exagero arcaico. Agora vejo experiências cenestésicas dos guerreiros intoxicados acantonadas na memória do herói máximo. O eriçar de cabelos notará a concentrada sensaçom de tensom. O fio de sangue no coruto seria imagem cenestésica da pressom sanguínea, que cristalizou no tufo dos capacetes indo-europeus (apontam vertiginosa antiguidade desse imaginar). O olho único -além de remedar o pai divino Lugus na batalha-, junto das contorções dos membros, também nasce da cenestesia alucinada. A "Lón (luan) Laith" (luz do herói), o maior mistério da "riastrad", talvez seja a luz interior que acompanha a exaltaçom física, nom lume projetado”.
Há mais. Um relato sobre CúChulainn fala-nos da fúria que era capaz de desencadear. Foi tanta a euforia á que chegou um dia, que o seu próprio tio temeu a chegada de do herói à corte, pola virtude das suas mulheres e pela vida dos seus guerreiros. Isto aconteceu depois de cortar as cabeças dos soldados duma fortaleza, capturou a dous cervos gigantes e matou com duas pedradas duas dúzias de cisnes. Então capturaram ao nosso protagonista e introduziram-no num caldeiro de água fria...mas ficou vazio. Repetiram a operação e a água começou a ferver. Ao enchê-lo pola terceira vez, a agua simplesmente aqueceu. Finalmente conseguiram tranquilizar ao mítico guerreiro. O herói celto-irlandês seria capaz de desencadear esta fúria nas posteriores batalhas.
Todo isto fala-nos dum rito iniciático, já que o Cúchulainn é o cão de Culam. Adquiriu o seu nome (antes era Setanta) após vencer a este cão. O guerreiro identifica-se portanto com este animal ao igual que os berserker com os ursos ou os ulfhednar com os lobos. Mas Cúchulainn também é capaz de desencadear transes. Se os berserker estavam vinculados com Odin, a vinculação de Cúchulainn com Ogma é clara, tal e como apontamos no passado artigo. Também Fionn imitava a este deus obscuro. Ógmios na Gália e Ogma na Irlanda, está emparentado com o grego Ogmos (linha,fila,caminho) relacionado também com Hégemon (guia, general). Ogmios é um marte celta identificado com Herakles por ir recoberto com uma pele de fera. Essa pele de fera é de novo a mostra de que o deus está vinculado com um animal no que se transforma. Este deus aparece também como um personagem sombrio vestida de preto que aparece com jovens encadeados a ele. De facto sabemos que existia uma classe de guerreiros celtas que combatiam encadeados para imitar o deus ao que se encomendavam. 
Se voltamos a vinculação de Marte e Ogmios vemos que estes dous deuses similares têm uma caraterística comum no que diz respeita da transformação em fera pois se Ógmios porta uma pelica, Marte está vinculado com o lobo. No mundo clássico também Zeus e Apolo estão vinculados com o lobo. É interessante apontar a que numa sauna relacionada com ritos iniciáticos dórios em Thera (Grécia) há uma inscrição dedicada a Apolo Lykeios, uma divindade que segundo Peter Anglesey também tem a ver com o transe extático praticado por meio da "quietude" em covas mercê ao isolamento sensorial. Vemos portanto que estes deuses têm em comum a fereza, a vinculação com um animal psicopompo e o transe extático....mas existia isto entre os Galaicos?.
Como bem apontamos noutro artigo, no contexto celto-atlântico no que nos achamos, Bândua é o equivalente galaico de Ógmios/Ogma, muito similar ao Odin germânico. Como deus dos laços, os guerreiros se vinculavam a ele. Se fizermos uma nova análise dos seus epítetos podemos tirar dados interessantes: Aetóbrigus "a fortaleça dos fogosos" ou "fogosamente forte" e Roudeacus "vermelho". Essa fogosidade, esse furor que faz ao deus avermelhar é o mesmo furor dos berserker, dos ulfhednar...é a “riastrad” e a fúria de Cúchulainn que adquire tais dimensões que é necessário introduzi-lo em caldeiros com água fria. 
Os galaicos conheciam as propriedades da Amanita Muscária e obviamente eram capazes de desencadear os transes que os levavam a lutar com furor na batalha. Esse fungo provavelmente estivesse vinculado com Bândua, da mesma forma do que o está com Odin e igualmente do que a fúria, a fortaleza e transe traça uma relação entre Ógmios/Ogme e Cúchulainn. Alguns dos capacetes galaicos podem ser uma alegoria a essa pressão craniana que se sente por vezes num transe de fúria extática, o “Lón Laith” (a luz do herói). Muitas representações de guerreiros celtas fazem uma alegoria a animais-espírito com os que se vinculam, javalis, aves etc... mas também é possível a representação da vinculaçao com o animal por meio da fúria, os tufos e o pelo ouriçado. Mas...vestiam os guerreiros galaicos com peles de lobo ou urso? Eu acho que sim.
Temos várias testemunhas com respeito a guerreiros celtas da P.Ibérica que realizavam dita prática. Há duas representações iconográficas: A estela de Zurita e o Vaso dos guerreiros de Numância. Mas também Apiano (Iber. 48) relata como no 142 a.C. os habitantes de Nertóbriga na Celtibéria enviaram a Marcelo, um mensageiro vestido com pele de lobo para solicitar a paz. Na Gallaecia temos por uma parte Artódio- "ossuno, urssino", que para o Professor Higino Martins é o topónimo perdido da terra do  Carvalhinho (As tribos caláicas p 493-494). Temos nestas terras Beariz (chefe, urso), o Mosteiro de Useira (Ursaria: terra de ursos) e o seu leste a Serra Martinha (Serra Martiniana, a dos Martinii) que faz referência a Marte, o guerreiro. Estas e outras evidências concordam com a vinculação do urso, animal que representava a classe guerreira no mundo indo-europeu. 
Temos por outro lado uma evidência no Castro Leboreiro (Concelho de Monção) em relação com o cânido que também aponta o Professor Martins. Topónimos como Quinjo, Lobeira e Penagache estão relacionados etimologicamente com os cânidos. A treba desde território era a dos *KWARKERNOI (Quarcerni) que para o autor está relacionado etimologicamente com "os dos capacetes ornados ou tufos" quer dizer a representação do preto sangue elevado pelo coruto da cabeça que caracterizava a Cúchulainn e ao transe extático guerreiro. Para além disto, em certos pontos da terra ocupada por esta tribo (teuta), rendia-se culto a Bândua. Vemos nesta altura uma vinculação entre Bândua e as fratrias relacionadas com o transe e a transformação em animal muito semelhante a Odin e os seus guerreiros assim como Cúchulainn e Ógmios/Ogma.



quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Uma experiência de ensino da Língua cumprindo objetivos legais.


Por Mabel Pérez Rivas

À hora de extender um modelo educativo baseado no desenvolvimento de competências básicas, são as instituições encarregadas de elaborar os currícula que vão ser precetivos, as que deven dar o primeiro passo. Neste sentido, a competência em Língua Galega, aparece integrada nos demais elementos do currículum: objetivos, conteúdos e criterios de avaliação, como finalidades a conseguir por parte do alunado e o professorado com o intuito de que ajudem na adquisição da competência linguística na nossa língua. No entanto no nosso País achamos um problema acrescentado por parte da Administração Educativa. Este é o estabelecimento de uma norma comum de ensino que não tem em conta o conceito de “intercomunicação ”, nem reconhece nem respeita as variedades linguísticas da língua objeto de estudo.
 Partindo deste preceito, o ensino da língua galega por parte da Administração converte-se assim nun curriculum precetivo e obrigatório que extende o uso de uma língua “artificial” afastada tanto da fala como da escrita e próxima à Língua Castelhana que tanto @s falantes nativ@s como @s neo-falantes não percebem, nem identifican como própria e que moit@s docentes pensamos que não devería ser o referente, já que não estimula a aprendizagem. Contrariamente  reforça o bilinguismo e a diglossia, sendo sempre a língua de imposição a que prevalece, afastando assim a consecução dos objetivos propostos no curriculum de referência que tem como finalidade primeira o conhecimento e uso da língua galega. Daí que o trabalho que @s docentes realizamos nas aulas seja um trabalho de pouca ou nula utilidade na consecução de finalidades e objetivos e cheio de transmissão de conteúdos que não levam ao fin: adquirir as competências básicas necessárias para o desenvolvimento da fala e a escrita na nossa língua, e ainda, o gosto pelo seu uso. 

O referente histórico da nossa língua acha-se na raiz da mesma: o velho galego-português. Do mesmo jeito, o futuro e projeção da mesma na lusofonia. Só com que os alunos tomasem consciência de que a sua língua é uma lingua com projeção social e internacional, rica em recursos, útil na sociedade e com um amplo leque de possibilidades de futruro, não só na Galiza, mas no mundo inteiro, já teriamos conseguido alguma das finalidades acrescentadas no currículo. Mas, indo para além, fazer-lhes ver como a través do conhecimento duma ou duas variedades duma familia linguística poden chegar ao conhecimento passivo das outras (nomeadamente da família românica: catalão, francês, italiano...), e assim chegar a abranger o conhecimento destas a través duma serie de estatégias surgidas a partir do estudo da própria língua. Com isso teríamos conseguido a finalidade última.

De todos é sabido que não é certo que para que duas persoas se entendam têm que falar a mesma língua ou a mesma variedade lingüística “pondo cada um dos interlocutores um pouco de esforço e interesse em chegar á compreensão é possível a comunicação entre variedades da mesma língua ou entre línguas diferentes mas próximas geograficamente" (Moreno Cabrera, 2006). A intercompreensão  procura uma troca comunicativa mais justa e procura uma sociedade multilíngue que a Conselharia de Educação não tem em conta á hora de estabelecer os critérios de ensino da nossa língua e “ordenar” a consecução de objetivos, finalidades e critérios de avaliação.  Para isso não habilita as estratégias adequadas e ainda limita a capacidade de trabalho do professorado.
 De termos em conta os critérios que nos falam do uso e gosto pela língua por parte dos alunos e tentando cumprir o estabelecido pela Administração, o professorado, empregando estratégias com as que não concordamos, repetidas infrutuosamente por imperativo legal curso após curso e afastadas da dinâmica de transmissão de conhecimentos, poderia realizar atividades que estimulassem e desenvolvessem atitudes de tolerância e apertura de cara a diversidade linguística e cultural, reforçando o interesse pelas línguas e desenvolvendo atitudes suscetíveis de facilitar a aprendizagem duma língua estrangeira, como diz querer a Administração.

São muitas as estratégias que podemos empregar nas aulas, mas a mais comum nos países civilizados é a de reflexionar sobre as línguas, as suas similitudes e diferenças, sobre a base de material sonoro e escrito. Produz-se o “acordar às línguas” quando parte das atividades têm como objeto línguas ou variedades que a escola não pretende ensinar, mas estão presentes entre os alunos.

Uma experiência próxima no tempo foi levada a cabo por nós nas aulas com a canção “Ai se eu te pego” de Michel Telo, http://youtu.be/zNaUR45umSY, aproveitando a sucesso que esta canção tem entre @s adolescentes e @s cativ@s. Os alunos distinguiam a sua língua oculta detrás da língua da cantiga e  reconheciam-na como própria, identificaram as palavras, a mensagem, o registo discursivo e a aprendizagem, assim como o gosto e reconhecimento da lusofonia como parte da sua cultura. Tomaram consciência de que sabiam muito mais do que acreditavam porque podiam perceber melhor a canção do que muitas das expressões e palavras que aparecem nos livros de texto. Posteriormente fez-se um trabalho de linguística comparada, similitudes e diferenças entre as palavras, tanto em galego RAG como nas distintas variedades da língua galego-portuguesa, -isto é, segundo as variantes galega, portuguesa e brasileira-, os distintos registros empregados, as expressões diferentes: “nossa”,  ”te pego”, o emprego do “você ”, analise do texto, estudo com umas palavras dadas… e a partir daí o estímulo cara a procura doutras cantigas, com outras normativas, variedades dialetais, linguísticas e outros registros. A experiência deu como resultado um uso mais quotidiano no discurso expressivo dos alunos de língua, afastado absolutamente do estímulo do prémio da pontuação positiva por fazê-lo, um estímulo na procura de material – o que favorece o uso das TICS- e um gosto pela aula de Língua como atividade formativa duma atividade lúdica.

Esta experiência, entre outras semelhantes, favorece a consecução de uns objetivos estabelecidos pelo EOLE (l’éveil au langage/ouverture aux langues a l’ecole) para a intercompreensão de línguas em França e que são aplicáveis nas aulas galegas  para o estímulo do nosso idioma e que não quebram nem fazem incumprimento da consecução dos objetivos estabelecidos pela Administração, mas permite-nos aos docentes aproximar o aluno a outras variedades dialetais e linguísticas e ao conhecimento e aprendizagem de línguas próximas. São estas...:

-         A acolhida e a legitimação das línguas de tod@s @s alun@s, no caso de haverem estrangeir@s.
-         A tomada de consciência do papel social do galego como língua comum.
-         O desenvolvimento de uma consciencialização do multilinguismo no contorno, próximo ou longínquo.
-         A estruturação dos conhecimentos linguísticos do aluno por meio das diversas línguas presentes ou ausentes na turma.
-         O desenvolvimento da reflexão sobre a linguagem e as línguas e sobre as habilidades metalingüísticas.
-         O desenvolvimento duma perspetiva comparativa, fundada sobre “a alteridade linguística” e que nos ajuda a conhecer melhor uma língua (por exemplo, a nossa língua segundo a norma que queiramos ) a través da aprendizagem doutras línguas.
-         O desenvolvimento da curiosidade do aluno nos descobrimentos de como funcionam as outras línguas (e da sua própria), da sua capacidade para escutar e atender, para reconhecer línguas menos familiares, da sua capacidade de discriminação auditiva e visual, de comparação, etc.
-         A aprendizagem duma metodologia de investigação a respeito da compreensão do funcionamento das línguas, do seu papel, da sua evolução e da sua história.
-         O desenvolvimento de estratégias de compreensão de línguas da mesma família.
-         O desenvolvimento duma cultura plurilinguística e pluricultural.

Outro jeito de vindicação do uso das distintas normativas e registros pode ser o proposto neste vídeo que reivindica o uso da língua irlandesa dum modo um bocado mais “subversivo”.  Fíorghael (Irish Language Short)  http://youtu.be/t3Kv4fZ2SO

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Ritos iniciáticos galaicos: A caçaria selvagem e os deuses escuros.



Por David Outeiro 

1-Ritos inicíáticos dos caçadores-guerreiros no NO peninsular: A origem da caçaria selvagem
  
É uma noite fria de inverno e como desde o principio dos tempos o povo reúne-se a carão do lume. O fogo da lareira ilumina o rosto dos presentes que acodem para se sentarem no escano mais uma vez. Ao longo desta polavila começam a surgir as historias e as lendas que os vizinhos contam. Compartilha-se comida e bebida enquanto as horas se vão passando nesta longa noite de inverno. Mas num ponto da noite já avançada, alguém toma a palavra. Repentinamente irrompe o silêncio, só perturbado pelos rangidos da lenha ardendo...as palavras pronunciadas referem-se à Santa Companha. Continua a narração enquanto todos escutam atentos e com os olhos bem abertos. Um homem velho fala do encontro...Mas não será o único no transcurso da noite na que falarão de aparições de comitivas perigosas, de grandes seres de olhos de lume e do caos do transmundo. Este acontecimento pôde acontecer em qualquer lugar da Galiza e pode que Vc., caro leitor, participasse numa destas reuniões ao redor da lareira. Eu escutei uma destas historias que como um facho fazem prender o lume da nossa alma e que nos leva a começar a Procura...assim, com maiúscula. Esta procura tem novas ferramentas e novos métodos que nos permitem rastrejar um velho enigma. Começamos pois, uma viagem de milhares de anos ao passado seguindo as pegadas da companhia...

Faz milénios, na velha Kalláikia, os caçadores da tribo teriam de passar um rito de iniciação. Este rito implicava a caça dum animal mas também o contato com o Além e o renascimento do caçador ou guerreiro. Os xamãs já chegaram a um amplo conhecimento da mente e dos ciclos da vida pelo que os caçadores iniciados aproveitaram uma destas capacidades. Com certas técnicas de transe extático, os caçadores poderiam desencadear uma força selvagem e depredadora que os levava a perseguir a sua presa até o Além. Esta mensagem pode estar codificada em múltiplos petróglifos da Idade do Bronce. Posteriormente, os galaicos continuariam com os ritos iniciáticos relacionados com as saunas e o trânsito e adquisição de certas capacidades. Encomendados a divindades escuras como Bândua, eram capazes de desencadear tal furor que acreditavam que podiam se transformarem em lobos ou ursos. Estas fratrias de guerreiros chegariam a ser similares aos Berserker ou Ulfhednar...ou os Einherjar; guerreiros eleitos por Odin para formar parte das suas tropas na batalha final do Ragnarok. Vinculados os guerreiros dirigiam-se ao Além no final dos seus tempos. É por isso que ainda hoje há quem assegura ouvir os ecos de essas escuras divindades e dos seus guerreiros que fazem a sua aparição na noite. A companha, a estadeia, a hoste e inclusivamente certos santos ou crenças relativas aos lobishomens são a pervivência destas crenças tão longínquas. Damos começo a nossa viagem...
Por todo o NO peninsular distribuem-se múltiplos petróglifos com um motivo recorrente. Grandes cervídeos, peças de caça que seriam a inveja de qualquer caçador, aparecem em múltiplas gravuras. Os cervídeos associam-se com vários motivos tais como espirais, reticulados, laberintóides e antropomorfos. Em muitos destes gravados aparece um ídolo-cilindro que semelha estar supervisando os acontecimentos. Analisando as gravuras, muitos especialistas chegaram a uma conclusão da que falaremos, mas com uma nova olhada e matizes.
Através da história, o homem estabeleceu uma serie de rituais entorno a certos períodos de idade ou a aceitação de certos indivíduos em certo grupo ou função dentro da sociedade. Este tipo de rituais são conhecidos como ritos de passagem ou ritos iniciáticos. A passagem ao xamanismo é um claro exemplo de iniciação já que no rito iniciático o futuro xamã deverá passar um transe no que alcançada a êxtase alcança a dar-se conta da sua morte, a morte do seu anterior ego. Após esta morte e ruptura com o passado, o xamã adquire certas capacidades que porá ao dispor do seu povo. O rito iniciático levado a cabo pelos caçadores-guerreiros galaicos da Idade do Bronze tem  a ver com a morte e renascimento mas neste caso trata-se dum renascimento de integração num grupo determinado e vinculado a um deus.

Um rito iniciático conhecido e similar é levado a cabo pelos guerreiros Massais. Para os Massais o consumo de carne de animais caçados é visto como algo de baixa categoria ou indicativo de pobreza. Por causa disso esta etnia africana só costuma caçar como treinamento para a guerra. Exceto em casos de necessidade. O rito iniciático dos guerreiros Massais, consiste na caça dum leão pelo menos uma vez na sua vida. Os guerreiros partem em pares junto com o seu melhor amigo, a quem lhe confiam a vida. Após localizarem o rastro dum leão macho, os futuros guerreiros deverão enfrentar-se a ele. Os guerreiros que adquirem maior protagonismo são os que lhe provocam o primeiro sangue e o que lhe corta o rabo enquanto ainda está vivo. O primeiro fica com o cabelo do leão e o segundo com o rabo. Uma vez terminado o período guerreiro, os dous protagonistas poderão formar parte do conselho do clã.

Este tipo de ritos teriam lugar entre os galaicos, mas com um estilo indo-europeu e acho que com supervisão dos xamãs. Se reparamos nos petróglifos vemos que os grandes cervídeos -animais que têm de ser caçados como trofeu pelo caçador-guerreiro-, estão vinculados a espirais, reticulados e laberintoides. Esta simbologia remete-nos aos estados alterados de consciência...mas pode que não estejamos a falar de cenas xamánicas. Os caçadores indo-europeus, igualmente do que os caçadores de outras latitudes através dos tempos, tinham certas ferramentas para resistir durante as jornadas de caça. No contexto indo-europeu essa ferramenta era a Amanita Muscaria, um fungo bem conhecido pelas suas propriedades enteógenas. Este tipo de substâncias atuam em função do indivíduo, não se tem uma experiência única. É por isso, que um indivíduo autosugestionado, poderia empregar a Amanita como potenciadora de certos efeitos desejados. Este fungo tem a capacidade de incrementar a atividade sináptica e de provocar euforia e excitação. Provoca visões mas os caçadores viam neste fungo uma ferramenta muito válida para incrementar as suas capacidades físicas. 

Isto podemo-lo ver numa narração siberiana dos Koriacos em relação ao mito do primeiro herói Grande-Corvo. Diz o mito que o Grande-Corvo captura uma baleia mas não tem suficientes forças como para levá-la voando. É por isso pelo que invoca ao deus Vahiyinin (existência) e diz-lhe que vá a certo lugar e coma os espíritos wapap para obter a força necessária. Vahiyinin cuspe sobre a terra e saem pequenas plantas com sombreiros vermelhos, a saliva do deus converte-se em pequenos pontos brancos...Estas plantas são os wapap. O Grande-Corvo come os wapap (é a Amanita) e consegue força para suster a baleia. Outro dado interessante é que os deuses Júpiter e Hércules recebiam o nome popular de "muscário" relacionado com o mesmo fungo. Estas divindades são fortes e a sua fortaleza está vinculada com os efeitos da Amanita.

Os indo-europeus conheciam portanto os efeitos do fungo, que levavam nos seus cintos de caça. Segundo Elisa Guerra Doce (Las drogas en la prehistoria p.222): 
"Dispomos dum grande número de informes antropológicos que demostram o consumo de Amanita Muscária por parte dos caçadores de Sibéria e Kamchatka durante as suas jornadas cinegéticas para combater a fadiga (Saar, 1991, en Ott 1996a). (...).Estes grupos paleo-siberianos costumam levar consigo vários exemplares de mata-moscas (Amanita) secos, ensartados numa correia de couro que pendura do seu cinto, que consomem para potenciar a sua força, como se recolhe nos escritos de V. G. Bogoraz, um antropólogo russo de começos do século XX (Wasson, 1968: 273-274). O "homem dos gelos" achado a começos dos anos noventa nos Alpes portava uma correia similar com dous restos fúngicos identificados ambos com o fungo do vidoeiro (Piptoporus betulinos) (Spindler, 1995:161-162), o que levou a alguns autores a propor que houvesse levado também espécies fúngicas alucinógenas que pôde consumir num intento infrutuoso de evitar a fadiga (Ott, 1996a: 357 nota 13), algo que por enquanto não pôde ser contrastado).

A Amanita era um sacramento vinculado a certas divindades ou animais, com relação entre eles. Algo similar acontece entre os Huichol, que empregam o cactus peiote.

Para os Huichol, o cactus deve de ser caçado por estar vinculado ao cervo, e é por isso que durante a sua recoleção lhe jogam frechas. Para os Huichol o cervo e o peiote são descendentes do Sol "Tau". Os Taraumaras, outro povo que emprega o peiote, são conhecidos por ser dos maiores atletas do mundo. Realizam carreiras rituais nas que consomem peiote e durante as que chegam a percorrer centos de km. Inclusivamente caçam as suas presas perseguindo-as. Perguntamo-nos por isto, se a Amanita poderia estar vinculada para os indo-europeus ao cervo e ao Sol, dum jeito similar ao peiote entre os Huichol. Há uma referência com respeito ao Soma dos Vedas (feito com Amanita) da Índia que nos interessa;

"Como cervo sedento, vem cá a beber, bebe todo o soma que queiras, uriando dia após dia, oh! Generoso! Assumiche a tua força mais poderosa!"
(INGALLS,1971)


Temos de reflexionar sobre certos petróglifos com soliformes associados ao cervo. Em palavras de D. Luís Monteagudo:

"Es probable que muchos de los círculos concéntricos de los petroglifos gallegos sean símbolos solares y su origen sería la espiral (que aunque más escasa también aparece en los petroglifos), esta espiral (que en el occidente de Europa ya aparece en las pinturas aurignacenses y en el “passage grave art” irlandés) representaría la secuencia de trayectorias descritas en cada periodo del año (probablemente 7 meses cálidos y 5 fríos o 6 y 6 ) por el sol que cada día (y por tanto más visiblemente cada mes) va cambiando sus puntos de nacimiento y puesta y en consecuencia su trayectoria más hacia el N."
Pois bem, o cervo é um animal vinculado ao sol, um animal solar, mas solar psicopompo, decadente. Citando novamente a D. Luís Monteagudo

“[…] que los “soles” de los petroglifos en general están situados demasiado bajos, no en posición alta, protectora y dominante como era de esperar y el cuenco de la Carolina lo comprueba. Esta perdida del nimbo, tan expresivo de la benéfica acción solar, y de la falta de colocación y agrupación apropiadas de los “soles” en los petroglifos pontevedreses pudiera”.

A vinculação do cervo com o sol e o seu caráter psicopompo (condutor de ánimas ao Além) é clara. Mas estará o cervo vinculado a uma divindade e a Amanita?. Se observamos os petróglifos, podemos ver a presença do chamado ídolo-cilindro. Esse ídolo-cilindro que aparece na Galiza da Idade do Bronze representa-se no Sul da P. Ibérica com grandes olhos, com grandes pupilas...pupilas dilatadas. Quer dizer, estes ídolos têm midriase, dilatação pupilar, efeito que produzem certos enteógenos. E temos a prova de que esse ídolo com midriase está vinculado, com efeito, a ditas substâncias e a cervos. Num copo achado na sepultura Nº15 de Los Millares, aparece a representação destes dous olhos com pupilas dilatadas junto com cervídeos e símbolos entópticos como os produzidos durante um estado alterado de consciência. 

Representações similares existem na cultura TRBK da Dinamarca assim como em certos ortostatos irlandeses. O vaso de Los Millares tem de estar vinculado a ingestão de enteógenos estimulantes, posto que outras substâncias (p.ex ópio) provocam miose, quer dizer, contração das pupilas. Similar uso puderam ter os  "vasos campaniformes" presentes em vários pontos de Europa, entre eles o NO peninsular Ibérico.

Os Koriacos de Sibéria vem clara a relação das renas com a Amanita e no caso dos Huicholes é o cervo com o peiote. O fungo emerge no Outono, mas o seu consumo pode-se produzir em qualquer época do ano, sendo complexa uma relação do ciclo do cervo/fungo/rito iniciático. A época mais propícia do ano para a localização dos grandes machos cervídeos é num período amplo que a dia de hoje, mas com variações, compreende agosto e setembro. Neste período começa o tempo de cio conhecido pelo bramido que emitem os cervos machos. Durante este tempo, os cervos lutarão pelas fêmeas, sendo os machos mais fortes e válidos os que podam copular. Mas o seu bramido  pode-os descobrir. O homem pode localizar ao cervídeo mais faclmente num período no que é mas suscetível de ser caçado. No calendario  gaulês de Coligny, o mes 10 (julho-agosto) recebe o nome de ELEMBIV[IOS] que faz referência ao cervo ou veado (em irlandês é Elit). Voltando ao ciclo do cervídeo, podemos ver que está próximo à saída das Amanitas no Outono. O período mais propício para um ritual iniciático que implicasse caçar um cervo é do meu ponto de vista na época do cio e portanto usando Amanita Muscaria. 
Mas a Amanita pôde ser recolhida com anterioridade já que é necessario secá-la para diminuir uma substância tóxica chamada muscarina e assim transformar o muscimol enteógeno numa substância mais potente: o ácido iboténico. Não podemos deixar de reflexionar -isso sim-, sobre proximidade do mês gaulês do cervo ELEMBIV(IOS), o cio dos cervídeos e a saída da Amanita muscaria.

Temos mais evidências de que os caçadores-guerreiros iniciados entravam num transe extático. Voltando de novo as gravuras associadas aos cervos vemos a existência de reticulados, que são visões produzidas num estado alterado de consciência desde as primeiras fases. Mas também outros símbolos como espirais fazem-nos referências ao mesmo. Mas...e se lhe perguntamos a um xamã, qué é o que vai dizer?. O antropólogo Geraldo Reichel-Dolmatoff mostrou-lhe símbolos similares aos representados nos petróglifos (e certas gravuras neolíticas) a um xamã tucano. Nesta caso tratava-se de espirais, círculos concêntricos num nível e na parte superior espirais dobres laterais com curvas esticadas entre elas. Yebá, o xamã, diz ao respeito que se tratava duma porta Isso mesmo representam, segundo alguns autores, muitos petróglifos galegos: portas ao Além. Acho que essas representações também podem ser exemplos de magia simpática que tinha por objetivo influir sobre a caça e fixar os animais-espírito na rocha.

Em muitas narrações célticas, descrevem-se caçadores que vão perseguindo uma presa, habitualmente um cervo ou javali. Esta presa, leva-os finalmente ao Além, quiçá por vontade divina. Os estados alterados de consciência produzidos pelos enteógenos como a Amanita Muscaria, eram interpretados pelos xamãs e guerreiros como um méio de viajarem ao além. O transe era a via  e a êxtase era a chegada a este mundo. Por isso os animais perseguidos por caçadores-guerreiros num transe extático eram relacionados, junto com a sua vinculação ao sol decadente e psicopompo, ao Além.

Mas neste transe extático, o caçador-guerreiro converte-se obviamente num depredador, mas não humano. Podia-se "transformar" em lobo. No caldeiro de Gundenstrup podemos ver como o deus Cernnunos afasta os animais solares dos perigosos ctónicos. O caçador deveria converter-se num animal ctónico, perseguir ao animal solar psicopompo traçando um vínculo e finalmente passar a prova. Após passar a prova, o caçador-guerreiro renasceria ao seu novo ser.

Mas quem era esse deus a quem se vinculavam? Continuaram os ritos iniciáticos? que têm a ver os berserker, Odín e Ogmios em todo isto?. No próximo capítulo continuaremos com esta procura que nos está a levar aos exércitos da noite e aos deuses escuros. Mas também achegaremos mais evidências provenientes de epítetos relacionados com Bândua, o deus da guerra galaico, dados das fontes Irlandesas e nórdicas que nos remetem ao transe extático que experimentavam guerreiros como Cuchulainn ou os berserker e ulfhednar vinculados a Odín.







Segundo André Pena Granha:
EL TEMA DE LA “CAZA SALVAJE” EN LOS PETROGLIFOS GALLEGO


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