domingo, 25 de setembro de 2011

A mudança de paradigma e a recuperação da memória histórica na Galiza. 1ª Parte







Por José Manuel Barbosa


0- A importância da História para as nações


Imaginemos um caçador paleolítico a seguir umas pegadas dum veado. Ele sabe que num tempo passado mais ou menos distante ou próximo que por aquele lugar transitou um animal. Pelo conhecimento das pegadas, o nosso caçador pode reconhecer o tipo de animal e as condições nas que ele está para poder ser caçado. A inteligência do nosso homem junto com a sua experiência passada e a trabalhada técnica de caça fazem com que continue o rasto e consiga dar com a peça para poder dar-lhe captura e poder assim alimentar à sua família que teria assegurada a sobrevivência durante uma boa temporada.
O caçador soube pelos restos dum passado manifestado numas pegadas que havia uma peça de caça e pôde completar o seu labor.


Isto não aconteceria se o caçador fosse um leão, um crocodilo ou qualquer outro depredador. Eles só responderiam ao estímulo de verem ou cheirarem à presa, nunca por terem conhecimento dum passado reconhecido por uns sinais ou marcas no chão a partir dos quais reconstruírem uma realidade com a qual pudessem prever um futuro provisor. Eis a importância do conhecimento do passado, sempre por meio dos restos que deixa e que são interpretados no presente para nos ajudarem a garantir o nosso futuro.

Também o conhecimento do passado para os povos é uma necessidade para a sua sobrevivência do mesmo jeito que é para o nosso caçador paleolítico ou para qualquer de nós individualmente. Podemos dar algumas provas: o tratado de Nanquim de 1842 foi de utilidade para a China para poder reivindicar com total legitimidade a devolução do Hong-Kong por parte do Reino Unido; o tratado de Utreque serve de utilidade para o próprio Reino Unido não ter de ver qualquer legitimidade por parte da Espanha na sua reivindicação de Gibraltar ou o a legislação saída do Congresso de Viena faz reconhecer que Olivença legalmente é Portugal embora não seja de facto.



01 – Compreender o presente

O conhecimento do passado nos ajuda a compreender o presente e isto permite mexer-nos no mundo no que estamos de forma prática, útil e de forma que o conjunto funcione sob critérios de saúde social que favorecem a estabilidade, a paz e a harmonia do grupo e com outros grupos.
Essa compreensão do presente nos leva a tolerância por conhecimento da dinâmica social. Assim poderemos compreender as razões que levaram a exercer a moral vitoriana e compreenderemos igualmente a falta de pudor dum ameríndio da Amazónia ou um nativo da polinésia e ver o absurdo da imposição do primeiro sobre os segundos.


Teremos uma ideia clara de porque a Generalitat de Catalunha é uma instituição ao serviço da liberdade do seu país mas poderemos reconhecer como a instituição da Junta da Galiza (Xunta de Galicia) tem conotações que derivam duma ideia de dependência e anti-autonomismo na Galiza (por isso a razão do “Conselho da Galiza” presidido por Castelão no exílio...).


Haveremos de compreender porque o Samhain, o Halloween e o Magusto têm a mesma origem e as mesmas feições básicas mas nem são exactamente o mesmo, nem nos corresponde aos galegos a identificação com o Samhain por muito que se lhe queira dar Bilhete de Identidade galego. O nosso é o Magusto com castanhas, bruxas, mortos que saem do Além, cabaças, etc... e não por isso é menos céltico. É igualmente céltico e ainda é a expressão da nossa celticidade galaica.


Poderemos perceber porque na Andaluzia existe o tratamento de “desrespeito cordial” insultando às mães dos amigos com um bom afã de “colegueo”(1) enquanto essa prática na Galiza ou em Portugal seja impensável por ofensiva.


Haveremos de perceber porque nas construções galegas há soportais e no entanto não há em Castela ou no Andaluzia...


02 – O conhecimento do passado nos orienta de cara o futuro

É este um ponto importante e de grande utilidade. O conhecimento do passado ajuda a assegurar a sobrevivência do grupo e não só a individual. O exemplo mais próximo que temos é o pensamento e sobre tudo a prática reintegracionista surgida na Galiza nos últimos trinta anos. A ideia de as falas galegas fazerem parte dum conjunto linguístico mais amplo conhecido internacionalmente com o nome de “português” leva a implementar para as falas galegas medidas que não só garantiriam a sobrevivência das falas galegas mas mesmo ajudariam a ver a Galiza como elemento importantíssimo da chamada lusofonia gerando uma mudança nas consciências dos galegos e das galegas que passariam dum conceito duma Galiza regional e periférica a uma Galiza central e importadora de modelos a seguir por uma civilizaçom que visa atingir num futuro próximo níveis de importância e de influência internacionais de carácter político, social, moral, económico, cultural e linguístico que a dia de hoje possui o mundo anglófono.



03 – O conhecimento do passado favorece o relacionamento com outros grupos humanos (próximos no tempo e/ou no espaço).

É fácil pensar como a Galiza pode se relacionar fluidamente com as nações atlânticas europeias pela sua proximidade física e pelos seus vínculos étnicos mas também é fácil pensar que embora não haja a mesma distância física ou genética, o relacionamento com os países africanos como Moçambique ou Cabo Verde ou outras mais longínquas como o Timor são viáveis e possíveis por termos uma língua comum. Esse pensamento vem dado pelo nosso conhecimento do passado e pela compreensão do presente.


04 – O conhecimento do passado tem um forte componente anto-identificativo

Os povos não existem sem memória e é essa a razão pela qual os Estados investem muito dinheiro no ensino do seu passado nacional e nos seus planos de estudo assim como para a sua construção nacional do mesmo jeito que conhecem perfeitamente com quais outros países se devem relacionar para defenderem os seus interesses.


1– Que História se ensina no Reino da Espanha

1.1 – O paradigma da historiografia castelhanista

Primeiramente temos que dizer que por Paradigma entendemos o sistema ou modelo conceptual que orienta o desenvolvimento posterior das pesquisas, estando na base da evolução científica. Se o paradigma está errado, tudo o que se construa a partir dele também vai estar errado e dentro da historiografia peninsular é base conceptual a ideologia castelhanista, quer dizer, o pensamento nacionalitário centrado em Castela a partir da qual se exprime e exemplifica todo o anterior e todo o posterior. Castela é o centro e nem só geográfico da península pelo qual também se exprime a periferia também não só geográfica.


Para o paradigma castelhanista há uma série de dogmas irrenunciáveis que exprimem o que é a península, e são os seguintes:

Espanha é Hispânia

Durante a Idade Média se foi construindo um jogo de hegemonias que tinham por finalidade o domínio e controlo da península. Houve a tentativa muçulmana e a tentativa cristã. Esta última começou sendo um projeto galaico mas após o século XIII, Castela começa a apanhar poder e visa unificar a Hispânia sob projeto linguístico e nacionalitário castelhano. Como elemento estratégico, o nome de Castela ou Grande Castela pareceria pouco acaído, pelo qual a adopção de “Espanha” como herdeira da “Hispânia” pode parecer mais inteligente e mais viável para conseguir adesões e evitar resistências. É por isso pelo que o nome de Espanha foi o nome desse projeto que tentava, e tenta, como indica o seu nome, a unificação da península, de toda a península, mas sobre chefia castelhana. Esta dirigência de Castela nunca teve vontade de partilhar poder com as outras nações hespéricas. Quis, em troca, impor e dominar sobre elas, eliminando-as ou reduzindo-as a regiões satélites ou mesmo absorvendo-as.


Portugal é um erro histórico

Na península houve desde tempos antigos vários polos ou centros etno-linguísticos e/ou nacionalitário-culturais. São estes:

1)      Um polo mediterrânico ou ibérico que se pode corresponder com os Países Catalães (Catalunha, Valência, Baleares) e mesmo Aragão e Múrcia.

2)      Um polo Sul ou Tartéssico que se corresponderia com a actual Andaluzia

3)      Um polo Nortenho-Pirenáico que se corresponderia com o povo vascão e o actual País Basco

4)      Um polo Atlântico ou Galaico-Lusitano que viria corresponder com a velha Gallaecia (actual Galiza, Astúrias e Leão mais o Norte de actual Portugal) e a Lusitânia (Portugal do Douro para Sul e aproximadamente a actual Estremadura espanhola)

5)      O Centro peninsular mesetenho.

Todos esses povos em maior ou menor medida caíram posteriormente, da Idade Média até hoje na órbita de Castela e todos foram mais um menos castelhanizados. Uns mais (Aragão, Múrcia, Andaluzia, Leão, Estremadura e Astúrias) e outros menos (Catalunha, Valência, Baleares, País Basco e Galiza). Mas de todos eles houve um território que ofereceu uma grande resistência apesar de ficar incluído dentro da Monarquia Hispânica durante um tempo, e esse foi o Reino de Portugal.
Castela não conseguiu a sua anexação e ainda menos a sua assimilação. É por isso porque o domínio castelhano da península não é total e graças a ele outros territórios podem pensar em se livrar dessa hegemonia mesetenha ao saber que isso é possível.
Portugal é portanto para o castelhanismo um erro histórico, um fracasso, e na narração oficial dos factos históricos apresenta-se sempre como algo que quase nem existe no melhor dos casos ou algo que há que desprezar no pior, mas que sempre apareceu nos mapas do domínio castelhano da península como algo estranho que nem era Espanha nem deixava de sê-lo.




Para o castelhanismo historiográfico Espanha é uma criação de Castela

Para o castelhanismo, a Espanha é uma criação de Castela e do seu génio, não deixando outra possibilidade. A partir daí as outras regiões ou são apêndices da própria Castela ou aderiram o projeto castelhano.
Andaluzia, foi conquistada aos muçulmanos, mas foi definida em palavras do hispanista e presidente da “Real Academia Española” Pedro Laín Entralgo de “Castela-a-novíssima”. Assim diz no seu livro “A que llamamos España”(2) tendo em conta que o velho Reino de Toledo foi desde muito tempo atrás “Castela-a-nova” ou a dia de hoje segundo a nomenclatura “autonômica” Castela-a-Mancha. Se a Mancha seria “a nova”, Andaluzia seria “a novíssima”. Etnocentrísmo sem qualquer dúvida.
Astúrias e Leão foram as origens do projeto unificador peninsular esquecendo que se correspondem com a Gallaecia asturicense, atlântica, céltica e sueva. A dia de hoje Astúrias está separada de Leão e da actual Galiza e é uma região que nada tem a ver com a Espanha taurina, flamenca e castelhana que se vende no exterior como ícone. Astúrias é muito próxima em cultura, estética e sentir à Galiza, embora o sentimento asturianista cresça como oposição ao galaico, construindo-se a partir dum anti-galeguismo contrário à história, absurdo e inútil que obstrui tanto o desenvolvimento identitário tanto asturiano como o galego.
A região de Leão, Sul da Gallaecia asturicense simplesmente foi absorvida por Castela numa região autónoma comum denominada Castela-Leão mas onde os leoneses são identificados e nomeados facilmente pelo resto dos espanhóis de castelhanos. Muitos leonesistas se opõem a isto, mas o achegamento a Astúrias não se sente como necessário e muito menos o achegamento à Galiza.
As regiões mediterrânicas de Aragão e Valência são também territórios em grande parte castelhanizados e desenvolvidos num anti-catalanismo forte e visceral, já que Catalunha é o único território espanhol que é capaz de fazer frente ao castelhanismo com um sentimento e uma praxe eficaz que poderia derivar numa ruptura que faria fracassar pela segunda vez (a primeira foi Portugal) a ideia da Hispânia castelhana e unitária.
Por outra parte o País Basco cuja parte mais ocidental deu origem à primitiva Castela é um país de fortes contrastes. Por um lado onde a resistência anti-castelhanista e anti-espanholista é mais forte incluso dum ponto de vista físico mas por outra onde o castelhanismo ou espanholismo tem apoios mais extremos, de tal jeito que poderiam chegar a inviabilizar o projeto nacional basco fora do contexto espanhol.
Finalmente o caso galego é um caso muito especial, com avanço importante do projeto nacional castelhano mas também com mais possibilidades de futuro se este depender da consciencialização a partir do seu passado anti-castelhano. A Galiza em potência é um autêntico perigo para o castelhanismo porque ela partilha língua e cultura com Portugal, o grande insucesso de Castela. Galiza foi historicamente quem criou o projeto unionista não castelhano e de unificação hispânica em épocas medievais e quem a dia de hoje pode olhar para Portugal e o mundo lusófono como via de saída para evitar a sua castelhanização completa e forçosa e a consequente desgaleguização.
Como vemos, a hegemonia castelhana chega a quase todos os pontos da península e isso é traduzido numa forma de contar os factos passados, isto é, a história da península e de descrever as origens das diferentes culturas e línguas da Hespéria. Esse poder faz pensar a esse castelhanismo que ele tem direito para impor a sua forma de perceber a realidade e sente que deve ser obriga de todos os povos hespéricos seguirem os mesmos objectivos e verem-se satisfeitos com os mesmos interesses, forem estes povos atlânticos ou mediterrânicos; forem estes nortenhos e verdes com as conseguintes implicações económico-sociais ou sulistas e quase desérticos; forem estes mesetenhos ou montanhosos... e o mérito é todo, sempre de Castela que foi a que se diz criadora e construtora da Espanha.


Espanha surge com Roma e os Visigodos

Como Castela tem de justificar o seu protagonismo e tem de possuir razões para cumprir com o seu destino unificador, deve haver uma realidade anterior que legitime, explique, fundamente e prove que as cousas são como ela diz que são.
A unidade da península deve ter uma origem e uma razão e esta vai estar baseada em unidades anteriores. A Espanha castelhana surge em Covadonga (Astúrias) , onde um pequeno e valoroso grupo de rebeldes cristãos luta numa batalha contra os invasores muçulmanos que curiosamente também queriam unificar a península. Os, já, “espanhóis” de Covadonga, uma vez consolidados com um poder político alternativo ao cordovês botam mão dum ideologema -o “goticismo”- que lhes dá uma razão para lutar contra os ilegítimos ocupantes muçulmanos da península até despejá-los da mesma e recuperarem o reino visigodo tal qual era anteriormente do ponto de vista territorial.
A cousa não acaba de ficar assim, porque anteriormente aos visigodos a Hispânia já estava unificada sob domínio romano de forma que a península deveria estar unida porque assim o esteve sempre. O pensamento castelhanista quereria conseguir manter e preservar essa unidade e banir do jogo político qualquer derivação que atentasse contra esse ideal de unidade o qual seria um erro grave ou mesmo um pecado. Para isso estava destinada Castela.


Os conceitos de Reconquista e Repovoação

A ideia paradigmática que dá o castelhanismo para “reconquistar” Espanha é por meio do avanço cristão sobre o território muçulmano limpando de islamitas as regiões ocupadas e repovoando-as com gente procedente do Norte. Esse jeito de limpeza étnica levaria à “união de todos os espanhóis” e sempre Castela a protagonista do projeto.
Reconquista é porque nunca foi legítima a entrada e ocupação da península por parte do islão e porque ainda havia a obriga moral e mesmo religiosa de recuperar, daí o termo, os territórios hispânicos anteriormente visigodos e cristãos. A Reconquista obrigava à expulsão dos invasores e a repovoação com cristãos ou como mal menor a reconversão de elementos islâmicos ao cristianismo.


A Galiza nem existe nem tem importância nenhuma.

Em todo este avatar histórico a Galiza não é nada, quase nem existe nem tem a menor importância nem protagonismo para a construção da futura Espanha. Desde o 711 em adiante quase de forma repentina a Galiza deixa de ser o país que ocupa as actuais terras nortenhas de Portugal, Astúrias e Leão para passar a ser uma triste regiãozinha cujos limites já são os que conhecemos hoje, que se vê ocupada pelos muçulmanos e que há que repovoar novamente com elementos humanos que se supõe provenientes irremediavelmente das Astúrias. Ovedo já não é Galiza, Leão é um reino desde o 910 quando esta cidade se passa a ser o lugar da Corte (3) e Portugal era Galiza “ma non tropo”.


1.2 Qual é a metodologia para ensinar a História de Espanha

A História que se estuda no ensino primário, secundário e universitário na Espanha atende a programas elaborados até certo ponto pelo Ministério de Educação mas em boa parte pelas Conselharias de Educação das Comunidades Autónomas. Aquelas Comunidades Autónomas com competências em educação, que a dia de hoje são todas, elaboram um temário com matéria relacionada com a Comunidade Autónoma correspondente mas exceptuando Catalunha e o País Basco que aplicam um paradigma diferente do castelhanista todas as outras seguem fielmente os ditados do arquétipo centralista. Foi por isso pelo qual estas duas Comunidades Autónomas tiveram problemas nos média durante os anos 90: por, segundo os média, manipularem a história de Espanha e inventarem umas histórias do País Basco ou de Catalunha que não se ajustavam ao passado real.
A Galiza teve problemas ultimamente (nomeadamente durante o governo do bipartido PSOE-BNG) embora os autores que defendiam o que chamaremos mais adiante “paradigma galeguista” já tivessem publicado as suas bibliografias anteriormente. O ataque foi mais do que nada político. Embora isto seja assim, os programas de estudo seguem uma história da Galiza bastante pouco séria do ponto de vista científico, que não atende às fontes documentais e que aprofunda pouco no passado do País partindo dos conceitos inamovíveis do padrão elaborado por Castela.
A metodologia no que diz respeito à história que se estuda no Reino da Espanha está baseada em dous pontos fundamentais:
a- A filosofia arquetípica castelhanista da qual vimos falando e que será tanto mais extremista na medida na que o regime ou o partido do governo em Madrid tiver menor vocação democrática. Filosofia, esta, que na prática é indiscutível, inamovível, falsamente científica e dogmática. Conhecemos casos de perseguição e acosso laboral de pessoas vinculadas à Universidade até o ponto de perderem o seu trabalho e a sua saúde por defenderem posicionamentos científicos discrepantes com a filosofia oficial, mesmo em época democrática (estou a falar dos anos 90 do século XX) e protagonizadas em alguns casos por professores ou professoras que nada teriam a ver com posicionamentos políticos galeguistas. Simplesmente por honradez e honestidade científica.



b- O presentismo cartográfico e de hábitos que nos faz entrar pelos olhos configurações territoriais e usos próprios do tempo presente aplicadas a épocas históricas nas que não se correspondiam as realidades em questão.





Artigo também publicado em Mundo Galiza


Notas
(1) Estou-me a referir à expressão “Hijo de Puta” dirigida a um amigo. Com isso se leva a cabo o “colegueo” que é uma palavra castelhana que vem de “colega” que significa “companheiro, amigo... Com esta expressão exprime-se a acção de fazer e/ou desfrutar duma boa amizade com alguém.
(2)  Lain Entralgo, Pedro: A que llamamos España. Circulo de lectores. Barcelona. 1994. Página 48.
(3) Casualmente para o castelhanismo o Reino de Leão também é identificativamente um Reino diferente do que o Reino de Astúrias. Curioso caso no que o nome do país muda segundo muda a capital do mesmo... ou quiçá por serem Reinos diferentes sejam também mundos diferente que não têm a ver uns com os outros. É curioso como ainda hoje no Principado de Astúrias consideram “Reis de Astúrias” todos os monarcas entre 711 e 910 quando a Corte se passou para a cidade de Leão. Não cabe na cabeça de ninguém que esse “Reino de Leão” desde Ordonho II em 910 possa ser o mesmo Reino do que surgiu em Covadonga ainda com capital diferente. Ao passar o Cordal Cantábrico já não é “Reino de Astúrias” mas de Leão porque dum ponto de vista presentista hoje Leão não é Astúrias.


domingo, 18 de setembro de 2011

O que a verdade esconde.


Por José Manuel Barbosa


Desde que Camilo Nogueira em 1996 começasse uma série de trabalhos relativos à recuperação da memória coletiva da Galiza culminados com o seu livro “A memória da nación. O Reino da Gallaecia” em 2001 e posteriormente os importantíssimos trabalhos de Anselmo Lopez Carreira  com “O reino medieval de Galicia” em 2005, Xosé António Lopez Teixeira “Arredor da conformación do reino de Galicia (711-910)” e Xoán Bernardez Vilar entre outros, fazem manifesta a existência duma visão galega da História da Península com toda claridade.

Com os textos dos nossos historiadores podemos demonstrar o protagonismo do nosso País durante toda a etapa medieval e ainda reconhecer um silenciamento intencionado do nome da Galiza assim como a usurpação intencionada de factos, personagens, iniciativas, eventos e demais elementos históricos e historiográficos em benefício de Castela ou dum conceito muito exclusivista do hispânico e da Hispânia, sempre castelhana.

Centrando-nos muito concretamente na Idade Media, há do meu ponto de vista alguns elementos a comentar que quereria salientar para ajudar a botar abaixo certos conceitos e mitos que em nada se ajustam à realidade histórica e por isso em nada beneficiam à ideia duma Galiza existente na História da Hespéria.

A Littera visigothica.

Testamento de Múnio Ramiz. Mosteiro de São Pedro de Valverde. Monforte de Lemos (Galiza). Ano de 1115

Aqui há um elemento no que a Galiza tem algo a dizer. É este um tipo de grafia medieval que ocupa os documentos dos séculos da Alta Idade Média. Também é chamada “littera toletana” ou “littera moçarábiga” ainda que todos os autores que estudam a ciência paleográfica concordem unanimemente em que nenhum desses nomes é correto.

O nome de “visigothica” não é correto, porque segundo eles as manifestações deste tipo de letra se dão no seu máximo esplendor após a chegada dos muçulmanos à Península, quando já o Reino Visigodo estava morto.

O nome de “moçarábiga” também não é correto porque não foi entre os moçárabes cristãos andalusis onde nasceu nem onde se desenvolveu com maior personalidade, sendo este povo utente de várias línguas romances particulares que se dão em chamar de “moçárabes” grafadas com ortografia árabe. Quer dizer é o chamado “aljamiado” ou língua romance escrita com grafia árabe. Havia textos em latim mas estes eram escritos com grafia latina versão “visigothica” embora com certas particularidades dependentes nas formas quer do norte cristão quer do mundo muçulmano no que viviam inseridos.


Texto em aragonês aljamiado. Livro de Iusuf

Outro nome que se lhe tentou dar a este tipo de letra foi o de “littera toletana”. O nome não teve muito sucesso como também não teve sucesso o denominá-la “littera hispânica”

Como vemos, esses nomes para este tipo de letra não atendem a uma realidade originária visigótica, nem a uma realidade de uso, como também não é moçarábiga nem toledana, onde não nasceu nem onde foi comum o seu uso, nem se cinge única e exclusivamente ao mundo hispânico, já que como uso gráfico foi partilhado por certas regiões da França mediterrânea, nomeadamente a Septimánia.

No entanto, parece ser que o exemplar mais antigo conservado deste tipo de escritura é a inscrição dotal de São Pedro de Rochas, cenóbio próximo à cidade galega de Ourense. O texto está datado no ano 611 segundo a cronologia da Era Hispânica, quer dizer, trinta e oito anos menos se o ajustamos ao cômputo pelo que nos regimos na atualidade que corresponderia ao 573 da nossa Era. Faltavam ainda doze anos para que a Galiza caísse nas mãos conquistadoras do Rei Leovigildo dos visigodos e parece, pelo texto, que era hábito usar este tipo de estética gráfica desde havia muito tempo.

 Inscrição dotal do Mosteiro de São Pedro de Rochas de 573
Quiçá o nome mais adequado para este tipo de grafia fosse “littera gallaeca” ou “littera suévica”?

Reparemos em mais pormenores:


Vejamos a feição das letras desta escritura "visigóthica" (ou melhor galaica ou suévica) e reparemos na letra Z. 
A sua configuração é uma evolução da dseta grega z. Esta daria origem com o tempo a conhecida letra que denominados cedilha ou zedilha cujo nome é um diminutivo de “zeda” ou “zeta”.




Na passagem da letra mal chamada visigoda para a carolina -nova grafia usada a partir dos séculos XII e XIII em adiante-, o Z com viseira acrescentaria ou hipertrofiaria esta até parecer um C com uma pequena virgulinha. Essa letra seria muito sucedida e de muito uso nas línguas da península ibérica e mesmo no ocitano e no francês (langue d’oil). Pensamos que ao Ç podemos atribuir-lhe uma origem galego-portuguesa por ser esta a primeira língua culta da Hespéria mesmo antes de que o castelhano fosse de uso comum, o qual segundo autores como Rodrigues Lapa, Eugênio Cosériu ou Carvalho Calero não deixaria de ser uma variante local estremeira do galaico oriental ou astur-leonês em contato com falares e substrato basconço do oriente burgalês. A primitiva Castela.

O uso do zedilha ou cedilha acabou estendendo-se por todas as línguas da península e mesmo pelas línguas da antiga Gaula ou Gália, e ainda por outras mais longínquas como o albanês, turco, romeno, letão,etc...

É curioso como uma das grandes críticas que o isolacionismo linguístico galego faz do uso do NH e do LH é que estes dígrafos são estrangeiros, procedentes do ocitano. Não se diz que também o é o CH e no entanto não se discute o seu uso em galego (porque também se usa no castelhano!!!) mas a origem do Ç é galaica exportada a outras línguas. Não vi ainda nenhum isolacionista defender o seu uso para a língua dos galegos.

Também é curioso que após o uso continuado desta grafia (Ç) em castelhano até 1726, fosse deixada de usar nos textos galegos quando a R.A.E. (Real Academia Espanhola) publica no seu “Diccionario de Autoridades” a norma pela qual é substituída  pelo Z. Ainda assim alguns autores, como a própria Rosália de Castro utilizam o Ç nos seus textos levada pela lúcida intuição da nossa poeta nacional por excelência. Infelizmente o seguidismo gráfico está presente hoje mais do que nunca.


Y ó fin soya quedei, pero tan soya
Qu’hoxe, d’a ,mosca inquieto revoar,
D’o ratiño o roer terco e constante,
E d’o lume o chis chas,
Cando d’a verde pónla
O fresco sugo devorando vai,
Parece que me falan, qu’os entendo,
Que compaña me fan;
Y este meu coraçon lles di tembrando
¡Por Dios!...¡non vos vayás!
Que doce, mais que triste
Tamén é a soledad!

Rosália de Castro. Folhas Novas


O assunto das grafias tem especial importância, já que nos descobre a usurpação da origem dum elemento no que na historiografia oficial nada se diz nem nada nos faz pensar que seja galego ao ser denominada comumente de "visigothico".


Como isso há mais cousas nas que incidiremos.

                                                                                   
                                                                                                            Continuará...... 

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Crónica duma negligência.






Por Carolina Horstmann

Faz poucos dias chegou a minha caixa dos correios, uma curiosa ligação da UNESCO. Algum visionário contato da minha lista de amigos, teve a brilhante ideia de partilhar e enviar este interessante espaço. Tratava-se da Biblioteca Digital –em formato multilíngue- que expõe material mundial de jeito gratuito onde podermos achar mapas, manuscritos de diversa antiguidade e uma grande variedade de elementos curiosos ao olho de qualquer pesquisador.

Depois da primeira impressão, duma nascente sensação de agrado perante tão cuidada plataforma digital é quando começo a me lembrar das tarefas pendentes que tem a UNESCO, como herdeira dum importante pacto de nações com a humanidade.  Franziu-me a sobrancelha automaticamente e a minha mente não deixou passar revista à crescente listagem dos “deve” que esta entidade tem com o património cultural mundial.

No transcurso da nossa história, os conflitos armados trouxeram-nos  como consequencia imediata, não só a perda de vidas humanas, mas também, uma grande devastação dum ponto de vista cultural. Admitia-se como botim  de guerra válido a apropriação dos bens culturais do inimigo e a destruição de aqueles  que não podiam ser transladados. Uma simples consequencia da guerra. Algo inevitável.

Entre os anos de 1815 e 1863 começamos a ver as primeiras tentativas de intenção real por proteger estes bens, com o Congresso de Viena e a posterior assinatura do Código Lieber em 1863, no qual se estabelecia “o dever de proteger as obras de arte, coleções científicas, bibliotecas e hospitais de qualquer dano”. Imediatamente depois, em 1935, com a assinatura do Pacto Roerich é quando vemos a iniciativa real e consistente para o cuidado destes bens, procurando a sua proteção tanto em tempos de paz como em tempos de conflito armado.

Nicolai Roerich

O Pacto Roerich e a bandeira da Paz
O Pacto foi ideado por Nicolai Roerich, artista russo e autor de mais de 7000 quadros, filósofo, escritor e arqueólogo, quem plantejava constantemente nos seus artigos de imprensa, a importância da proteção dos monumentos face os efeitos destrutivos da Primeira Guerra Mundial, começando, já, naquela altura, a chamar a atenção das pessoas para protegerem a herança cultural do seu país.

Roerich cria um novo conceito de Cultura, por meio dos seus escritos de Ética viva e vai salientando uma diferença entre esta e a civilização, onde estipula que “enquanto a cultura se relaciona com o mundo espiritual do homem na sua autoexpressão criativa, a civilização não é mais do que a organização exterior da vida humana nos seus aspeitos materiais e civis. A confusão entre ambos os conceitos –sinala-, leva à pouca valorização do elemento espiritual no desenvolvimento da humanidade”.

É por isso, que em colaboração com George Chklaver, Doutor em Direito Internacional e Ciências Políticas da Universidade de Paris redigem o convénio sobre a proteção dos tesouros da cultura, que posteriormente há de ser conhecido como “O Pacto Roerich”. Assinado o 15 de Abril de 1935 em Washington, com a presença de representantes de vinte países de toda América.
Simbolo da Paz Proposto por Roerich


Esta nova visão da consciência selava-se com a aprovação do uso dum sinal específico, uma bandeira ideada para identificar os objetos ou lugares a serem protegidos: A chamada “Bandeira da Paz”. É uma bandeira branca que tem uma circunferência com três círculos de cor vermelho dentro de si. Tenta significar a totalidade da cultura e dentro –representado pelos pontos- a religião, a arte e a ciência. Descreve-se também como as relações da humanidade no passado, no presente e no futuro.

Há que sinalar o profundo significado humano que tem este símbolo arcano utilizado pelo Roerich, presente na arte e a expressão da humanidade desde tempos imemoriais, achando-se o mais antigo deles numas pedras de Mongólia, datadas há mais de 9.000 anos. Este símbolo é conhecido como “Chintamani” ou “Cintamani”, e pode ver-se em infinidade de obras a través da história; desde tapetes Otomanos até no brasão do Papa Pio XI.

Tapete Otomano e Brasão de Pio XI


Evolução da proteção dos bens culturais.?
Toda tentativa foi vã. Ainda com a Bandeira da Paz ganhando em conhecimento popular e ondeando em alguma instituição, a devastação da II Guerra Mundial foi muito grande. No término da guerra, a vontade dos homens e dos lideres dirigiu-se novamente em retomar as conversas, criando uma e outra vez Convénios e Reuniões várias através dos anos.

É em 1954 quando é retomado o Pacto Roerich como documento base para a redação do “Convénio Internacional da Haia sobre a proteção de valores culturais em caso de conflitos armados” destinando-se a Bandeira da Paz a proteger os objetos culturais de valor. Esse mesmo ano, em 16 de novembro passa-se esse convénio para mãos duma nova organização: a UNESCO:

Neste é que se compromete a resguardar e respeitar os bens das nações, entrando em vigor em 7 de agosto de 1956. Nele manifesta e reforça a ideia de utilização do convénio, o mesmo em tempos de paz como em tempos de guerra, resguardando-se primeiramente os objetos que têm valor artístico, histórico e arqueológico, os lugares que servem para salvaguardar elementos de valor e finalmente os centros monumentais. Até aí tudo bem.
O estranho começa com a mudança do agora chamado “Emblema dos Bens Culturais”, que não é necessário usá-lo em tempos de paz mas em tempos de guerra deve estar em lugar visível.

(Pergunto-me, qual o efeito no coletivo das pessoas a aparição dum símbolo que não têm visto nem conhecem)

Emblema de proteção geral e emblemas de proteção específica propostos pela UNESCO

As deficiências deste novo convénio são inúmeras. Na teoria estão resguardados os tesouros e o património cultural das nações, estando devidamente inscritos e pormenorizados. Portanto, se o governo que nos administra ou os nossos responsáveis culturais decidirem passar sobre o Castro galego da Lagosteira, por mais que lhes ponhamos autocolantes com o triplo emblema de proteção hão de arrasar igualmente o nosso património.


Outra das deficiências têm a ver com o desconhecimento dos Estados (e as suas forças armadas) sobre este pacto e o baixo número de Bens inscritos. Aliás, se não houver sanções claras às violações do convénio sobre destruição ou furto de obras de arte tudo fica em água de bacalhau. E o mais importante, quiçá: a nula necessidade de difusão em tempos de paz que os Estados têm. Inclusivamente os emblemas de proteção são difíceis de achar em internet.

Desde a promulgação até o dia de hoje, são incontáveis as listas de conflitos bélicos acontecidos. A destruição e os roubos (quer pela população, quer por encomenda) são maiores do que o retorno das peças ao seu lugar originário após finalizados os confrontos. Um exemplo claro foi o conflito da antiga Jugoslávia que sendo um dos países mais ativos e com maior número de bens inscritos para a sua proteção, perdeu quase o 70% dos mesmos e muitos dos seus tesouros devidamente “protegidos” ainda aguardam para ser devoltos à sua origem.

Temos portanto a UNESCO, que tira formosas páginas em internet mostrando-nos  um importante número de tesouros para ser partilhados pela humanidade mas politizada como qualquer Estado, onde só tem proteção quem a pede e ainda posteriormente entra num sistema de votação para ver se lha concedem ou não. O Estado que pede essa proteção está obrigado a manter-se atualizado no que diz respeito dos Convénios com o fim de levar conta das mudanças e poder estar ao dia quando se reclamar a proteção requerida.

Uma instituição como esta da que falamos, lenta e de baixa reação perante os acontecimentos deveria reconsiderar a sua praticidade. Para amostra chega com lembrarmos o acontecido na devastada Biblioteca de Bagdade em 2003, onde após de três roubos foi organizada uma expedição de expertos por parte da UNESCO  para valorizar os danos causados tanto na estrutura do edifício como de perdas causadas pelo bombardeamento. Ali só havia uma estrutura totalmente derruída  com uma perda de livros e manuscritos históricos comparável à destruição da Biblioteca de Alexandria há quase 2.000 anos. Informação sobre Mesopotámia, a Grécia de Alexandre o Grande, o Império muçulmano medieval entre outras cousas.... Tudo estragado. Perdeu-se aí, entre outras cousas, uma valiosa documentação que pormenorizava a História da Galiza em época da ocupação muçulmana. Informação muito importante para a historiografia Galega que poderia ver reconstruídos certos elementos historiográficos que hoje parecem obscuros para alguns e reafirmarem a ideia dum Reino Soberano e protagonista do acontecer peninsular na Idade Média.

Perante tanta imprecissão da UNESCO, porque não voltar ao símbolo arcano que está no profundo das nossas memórias e fazer acordar o afã de defesa do patrimonio e os bens culturais próprios em cada um de nós?. Porque não ir para além, incluindo-a no nosso imaginario vexilológico, utilizando-a também em tempos de paz? (tal e como acontece atualmente em diversas nações americanas).

Talvez fazê-las ondear em soutos e fragas. Pintá-las na língua antes de ser amputada das nossas memórias; ou instalá-la em mámoas e Montes Sagrados (como o Monte do Seixo ou o Monte Pindo), contra as máquinas e as eólicas. Fazer acordar a Paz-Ciência no coração dos seres humanos adormecidos desta Terra verde e cheia de História,, lembrando sempre que como disse Nicolai Roerich: “as ideias não morrem, dormitam às vezes, mas ao acordarem são ainda mais fortes do que eram antes do sonho”.




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